Publicado originalmente no ConJur:
Por Lenio Streck
1. Pequena introdução
De há muito tento evidenciar a despreocupação por parte da doutrina e, por conseguinte, dos juristas brasileiros em geral acerca da teoria da decisão. Afinal, de que adianta criarmos, diariamente, novos “ismos” (neoconstitucionalismo, pós-positivismo, pragmatismo jurídico, etc.) se, ao fim e ao cabo, o Direito é simplesmente aquilo que os tribunais dizem que é?
Dentre os temas essenciais a uma teoria da decisão coerente com o conceito de Estado Democrático de Direito, destaco aqui (mais uma vez) o problema da fundamentação das decisões.
Com efeito, em meu comentário ao inciso IX do art. 93 da CF afirmo que “a fundamentação das decisões — o que, repita-se, inclui a motivação — mais do que uma exigência própria do Estado Democrático de Direito, é um direito fundamental do cidadão”.
Em sentido semelhante, só que na esfera da teoria política, Rainer Forst desenvolve a ideia do direito à justificação (das Recht auf Rechtfertigung). Em outras palavras, apenas a partir da justificação normativa do exercício do poder estatal e, portanto, do poder judiciário, podemos conceber um modelo político e jurídico que inverta o pressuposto hobbesiano (e positivista) de que é a autoridade e não a verdade que impõe o Direito (auctoritas non veritas facit legem).
A partir da apatia teórica da cultura jurídica brasileira em relação ao tema, como delineado, percebemos a incorporação de elementos no discurso dogmático e jurisprudencial cuja grandiloquência é proporcional à ausência de sentido e, pior, à perigosa inconstitucionalidade.
O ponto que desenvolvo hoje diz respeito à ideia de que magistrados podem se apropriar da fundamentação de decisões prévias e transpô-las ao caso que têm diante de si para julgamento. Em outros termos, trata-se de um “Ctrl+c Ctrl+v” jurídico. Só que com um nome grandiloquente: fundamentação ou sentença per relationem. Vejamos.
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2. Conceito de fundamentação per relationem
Levada à literalidade, per relationem é “decisão referencial”. Taruffo diz que a técnica da motivação (sic) per relationem consiste na técnica decisória empregada quando “o juiz não elabora em um ponto decisório uma justificação autônoma ad hoc, mas se aproveita da justificação contida em outra sentença“. E isso que ele está falando de matéria cível e não penal (liberdades).
Há outros conceitos no Brasil, todos “darwinianamente” adaptados para justificar “fundamentações” replicadas.
3. Posição do Superior Tribunal de Justiça
Como nosso “sistema” (que não é sistema) de precedentes é frágil, há posições das mais variadas. O Superior Tribunal de Justiça tem admitido a sua utilização, afirmando que, para que não haja ilegalidade, o órgão judicial, ao se valer de trechos de decisão anterior ou de parecer ministerial como razão de decidir, deve adicionar motivação que justifique a sua conclusão, com menção a argumentos próprios (por todos, (AgRg no HC 613.826/SC, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª T., DJe 2/12/2020).
Em matéria penal, o STJ fixou a tese nº 18: “A utilização da técnica de motivação per relationem não enseja a nulidade do ato decisório, desde que o julgador se reporte a outra decisão ou manifestação dos autos e as adote como razão de decidir“.
Já mais adianto falarei do “desde que”.
4. Posição do Supremo Tribunal Federal
Para o Supremo Tribunal Federal, é válida a motivação per relationem nas decisões judiciais, inclusive quando se tratar de remissão a parecer ministerial constante dos autos (cf. HC 150.872-AgR, por todos).
Sem julgar em Repercussão Geral específica, o Supremo Tribunal Federal reafirmou o entendimento ao afetar e julgar a RG na Questão de Ordem no Agravo de Instrumento nº 791292/PE no sentido que
“o art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas“.
O caso concreto se valia parcialmente da técnica da motivação per relationem. Em síntese, definiu que “O art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que sejam corretos os fundamentos da decisão” (Questão de ordem acolhida para reconhecer a repercussão geral, reafirmar a jurisprudência do Tribunal, negar provimento ao recurso e autorizar a adoção dos procedimentos relacionados à repercussão geral. AI 791292 QO-RG, min. Gilmar Mendes, julgado em 23/06/2010, RG – DJe-149, 12-08-2010).
5. De como a questão complexa e o que ainda não foi dito
Tanto a posição do STJ quanto a do STF não deixam clara a questão. Com todo cuidado, tentarei analisar a temática.
Com efeito, dizer que se admite fundamentação (e não motivação, por favor) per relationem “desde que” o julgador se reporte a outra decisão ou manifestação dos autos e as adote como razão de decidir, é relativizar o artigo 93, IX, da CF. Basta ver a ambiguidade e vagueza do enunciado. Nele cabem coisas demais.
O que é “reportar” a outra decisão? Qual “manifestação dos autos”? O que é isto — “adotar como razões de decidir”? O espaço de discricionariedade, aqui, transforma o julgador em legislador intersticial com poderes de redefinir a própria Constituição. É mais fácil definir o sentido de injusta agressão do que preencher a abertura semântica dos enunciados do STJ e do STF.
O que se pode entender por “ainda que suscintamente”? Quantas linhas? Qual é o limite? Existiria um “suscintômetro” para definir o sentido e o alcance?
Mais do que isto, parece que parte da doutrina e da jurisprudência não está levando em conta que o CPC (artigo 489) e o artigo 315 (CPP) estabelecem os requisitos de uma “decisão fundamentada”. Um registro: a decisão do STF tida como paradigma é de 2010; o CPC é de 2015; e o CPP foi alterado na sequência. Logo, o STF tem de reanalisar a matéria.
Com efeito, vejamos o que dizem os dispositivos, de idêntica redação?
“Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I – limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V – limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Parece evidente que as decisões do STJ e STF que convalidam fundamentação per relationem desbordam frontalmente do CPC e do CPP. Não leva(ra)m em conta os códigos processuais.
Também parece evidente que essa espécie de heurística (com todos os problemas que se tem sobre esse conceito) estabelecida pelos dois dispositivos, com seis incisos, espelha, esculpidas em carrara, as exigências do artigo 93, IX, da Constituição do Brasil.
Não há esse espaço discricionário para que os tribunais redefinam a Constituição e tampouco desdigam o que dizem os códigos. Há um estatuto epistemológico mínimo (como diria Otavio Luiz Rodrigues Jr) da legislação processual. Carece de melhor fundamentação a posição das Cortes superiores nesse caso. Basta que se faça uma análise cuidadosa, isolada ou conjuntamente dos seis incisos em questão — análise essa aqui desnecessária, face a sua quase-auto evidência.
Exemplos não faltam (no post scriptum chego na justiça do trabalho). No campo penal trago um caso exemplar que mostra a necessidade de as Cortes revisarem os entendimentos sobre a “técnica” per relationem, que é o RE resultante do HC 462002/RS, em que o STJ anulou decisão de Tribunal que determinou quebra de sigilo de paciente retroativo a mais de 10 anos, em “fundamentação” de 10 linhas, reportando tão somente ao petitório do MP (o exame do acórdão do STJ bem mostra como isso ocorreu). Observe-se, por justiça, que o STJ fez distinguishing da temática, dizendo que, no caso, não se aplicava a tese per relationem, porque o julgador não fundamentou. Assim, anulou a decisão do tribunal. A matéria chegou ao STF, que, por maioria, deu provimento ao RE interposto pelo MP, em sede de agravo, acatando a tese de que a fundamentação da origem era válida, portanto, correta a aplicação do per relationen.
Eis o ponto. Uma adequada hermenêutica do artigo 93, IX, em combinação com os requisitos dos artigos do CPP, aponta para direção contrária à tese da admissão per relationen.
Isto porque, nas ocasiões em que são referidas outras decisões ou peças do MP, e estas são comentadas-refletidas na decisão, já nem há de falar em per relationen. Parece que o ponto está na origem.
Ou seja, o equívoco pode estar em se pensar que per relationem poderia ser uma espécie de decisão heterodoxa. Ocorre que, combinando os dispositivos legais-constitucionais acima referidos, já hoje não se pode falar em fundamentação per relationem. Ela, em si mesma, é “o problema” e não apenas “um problema”.
Explicarei melhor esse ponto. Qualquer decisão bem fundamentada por certo referirá outras decisões para reforço ou cotejo, doutrina e jurisprudência. Veja-se que os artigos 489 e 315 sequer permitem a simples citação de uma ementa sem contextualização. A citação de outras decisões não transforma a decisão em per relationem.
Portanto, o que se deve evitar é aquilo que o próprio legislador, bem recentemente, colocou como nulidade, nos detalhados incisos dos artigos 489 do CPC e 315 do CPP. Afinal, como salvar decisões que batem de frente aos aludidos incisos? Per relationem seriam decisões que driblam os referidos dispositivos?
Pensemos e leiamos de novo os aludidos incisos. Restará algo da tese “per relationem”? Ainda uma pergunta: e se a decisão fizer “relação” totalmente (como no caso do HC acima comentado) à peça defensiva… valeria per relationem? Neste caso não vale?
De novo: diante do espelhamento que os artigos 489 e 315 fizeram do artigo 93, X, da CF, restará ainda algo da fundamentação per relationem?
Penso que não.
6. Para que serve um recurso?
A pergunta que dá título a este tópico pode soar trivial, mas peço ao leitor que reflita seriamente sobre ela.
Recursos são garantias institucionais de uma nova apreciação da decisão tomada à luz do caso concreto (se não esbarrar na Súmula 7 do STJ!) e dos novos argumentos trazidos pelos recorrentes, para evitar os riscos de erro presentes em uma decisão única e não revisável.
As instâncias recursais também podem errar? Sim, mas, tirante os obstáculos decorrentes de indevidas “jurisprudências defensivas”, as chances de erro são (ou deveriam ser) diminuídas a partir do momento em que eles trocam argumentos sobre uma decisão já existente. Com isso, têm a oportunidade de aprimorar o processo deliberativo, verificando suas inconsistências e acrescentando novas informações e razões de decidir.
Ora, se existe uma decisão prévia justificada e argumentos discutindo seus eventuais erros, o mínimo que se espera é que, em grau de recurso, se enfrente esses novos argumentos e justifique se eles podem ou não mudar a decisão do caso.
Contudo, ao se permitir que o juiz/tribunal apenas mantenha a decisão por seus próprios fundamentos (ou de parecer do MP ou algo desse jaez), sem enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador, está-se, na prática, suprimindo uma instância. O recurso não é uma mera formalidade. Ele faz parte da visão substantiva de contraditório como garantia de influência, como diria Dierle Nunes. Aliás, Dierle também defende recursos como espaços discursivos para formação do provimento jurisdicional.
Vale lembrar o que a ideia dworkiniana do direito como um “romance em cadeia” significa: tal como no experimento de um livro escrito por várias pessoas, os juízes têm que manter alguma continuidade narrativa com o capítulo anterior, mas também têm que fazer a história avançar no capítulo que lhes cabe escrever, tendo em vista o que imaginam ser o livro em sua integralidade. Não podem simplesmente copiar e colar o capítulo escrito por outro coautor!
Em todo caso, não é preciso concordar com minha visão teórica para aceitar o ponto que defendo nessa coluna do Observatório. Peço apenas que expliquem essa fundamentação per relationem a um professor de lógica informal habituado a fazer análise argumentativa de debates. Ele irá dizer que aí não existe progressão do debate. Não existe uma série argumentativa em que argumentos dão lugar a contra-argumentos, etc e etc. O que existe é uma instância simplesmente repetindo o que disse a outra (ou o MP). Isso sequer é debate. Trata-se de mero apego dogmático a uma opinião. É impressionante como, no Direito — e digo isso com toda a lhaneza, mas com muito zelo e cuidado epistemológico — não conhecemos essas regras mínimas sobre o que é argumentar.
Este é um problema central em nosso sistema de justiça. Os juízes acham que argumentar é apenas ônus das partes, na busca de seus interesses pessoais. Esquecem que argumentar é também um dever dos juízes, por exigência democrática. E, logo, isso se aplica aos Tribunais.
Post scriptum: Vejam o alcance e os efeitos colaterais de uma tese inconstitucional
Minha preocupação, aqui, foi mais no campo das liberdades. Mas, o que dizer quando se trata de direitos de sobrevivência — justiça do trabalho? Vejam a posição do TST:
A confirmação integral da decisão recorrida por seus próprios fundamentos não implica vício de fundamentação, nem desrespeito às cláusulas do devido processo legal, do contraditório ou da ampla defesa.
O ponto é: de que adianta avançarmos na CF e nas leis se o positivismo jurisprudencialista (realismo é positivismo fático – conforme explicito no verbete correspondente no meu Dicionário de Hermenêutica) se substitui ao legislador? O que explica essa posição do TST?
Com a palavra, a doutrina. Que deve(ria) doutrinar…!