Publicado na Agência Sportlight
Rio de Janeiro, 19 de maio de 2010.
Um tiro matou Hélio Ribeiro, morador das cercanias do Morro do Andaraí. Seu crime: fazia reparos na janela de casa com uma furadeira elétrica. Ao ver a cena, um policial do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), não teve dúvidas: fuzilou o homem em seus 46 anos de vida.
O batalhão fazia uma operação na favela, em busca de bandidos vindo do Borel, ali perto. O capitão Ivan Blaz, então no comando do BOPE e agora porta-voz da Polícia Militar do estado, explicou o motivo: “o cidadão apareceu na janela com o equipamento”. Na nota da polícia, a explicação de que Hélio Ribeiro foi confundido com um traficante armado.
Rio de Janeiro, 11 de maio de 2012.
O helicóptero sobrevoa a favela da Coreia, zona oeste da cidade, mantendo uma altura entre 900 e 1.200 metros. De repente, baixa a uns 20 metros de altura e desata a mandar rajadas de metralhadora favela afora. Por nove quarteirões, em pleno formigueiro urbano. Tendo como alvo, ao menos inicial, o traficante Márcio José Sabino Pereira, o Matemático. Uma cena não vista provavelmente nem no Iraque ou no Afeganistão, onde, embora violações sejam constantes, não se ousou chegar a tamanho nível desprezo pela vida de milhares de cidadãos.
Rio de Janeiro, 17 de fevereiro de 2018.
Em programa da Globonews, o general Augusto Heleno defendeu “regras de engajamento flexíveis” na intervenção militar em curso no Rio. Na prática, que se possa eliminar pessoas de acordo com a avaliação do militar em ação. Por exemplo: se achar que alguém está oferecendo risco de confronto, se está portando arma, mesmo que não esteja em confronto. Em lugar de eventual prisão, que se mate. Repita-se: mesmo que não esteja em confronto. Na íntegra, disse: “Se interventor fosse, lutaria por regras de engajamento flexíveis, que possilitassem a eliminação de pessoas com atos ou intenções hostis sem nenhuma consequência jurídica aos militares”.
Defendeu ainda o que seus pares tem defendido: o mandado de busca e apreensão coletivo e que o militar só possa ser julgado na justiça militar. Sobre matar alguém em “intenção hostil”, lembrou o exemplo do Haiti, país onde comandou a intervenção militar entre 2004 e 2005. No qual, segundo ele, se deve o que chamou de “sucesso da operação” por permitir tal ato, entre outras possibilidades. Os Estados Unidos, maiores entusiastas da intervenção no pequeno país, não consideraram o comando de Augusto Heleno na intervenção um sucesso. Documentos vazados pelo Wikileaks mostram insatisfação e preocupação quanto aos excessos cometidos sob o comando do general. Nos papeis, o então embaixador dos EUA no Brasil, John Danilovich, aparece pedindo a substituição do general pelos métodos empregados. A substituição se deu em setembro de 2005.
Como mostram os dois episódios, tanto do homem fuzilado enquanto fazia consertos na sua varanda usando uma furadeira quanto o da favela da Coreia, as “regras de engajamento flexível” já vigoram há anos por aqui. Especialmente flexíveis quando estamos falando de negros e pobres. Desnecessário enumerar casos de vítimas nas incursões da polícia quando estavam em suas casas, em suas escolas. Não daria tempo apenas no ano de 2018 fazer qualquer tentativa de pesquisa de casos de “engajamento flexível” nesta cidade e neste país, desde sempre. Portanto, tornar lei só massificaria ainda mais o instrumento.
No entanto, ponto aqui dessa breve pensata não é esse. Outros, muito mais capacitados e brilhantes ao falar do tema, ao abordar segurança pública, ordenamento jurídico e afins, tem dado conta exemplarmente disso. Embora obviamente não seja necessário ser grande especialista em nada para se indignar com o “engajamento flexível” vigente por aqui muito antes da república. O engajamento flexível é flexível por aqui para um lado só desde a dor das senzalas, dessa falta de empatia de quem naturaliza o extermínio alheio por não enxergar um igual no outro. O outro pobre, negro e favelado.
Portanto, vamos ao ponto que leva esse texto a sua seara. O que chama atenção mesmo é o general, o mesmo que agora bate o coturno e pede engajamento flexível e a necessidade dos mandados coletivos, além de julgamento eventual em foro militar, um arauto da moralidade, da ética e da ordem, e em cujos pronunciamentos é veemente indignado contra a corrupção, ser o mesmo que por sete anos foi homem de inteira confiança, do mais estrito círculo e indicado por Carlos Arthur Nuzman no Comitê Olímpico Brasileiro (COB). Embora sem qualquer citação sobre o general nos escândalos, chama a atenção, diante da veemência do mesmo contra a corrupção, ter estado ao lado de Nuzman todos esses anos sem ter percebido nada.
O mesmo Carlos Arthur Nuzman preso no ano passado pela acusação dos crimes de corrupção ativa, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e enriquecimento ilícito.
O general Augusto Heleno entrou para o COB no dia 1º de agosto de 2011, logo após a ida para a reserva do exército em ato poucos meses antes, no dia 9 de maio daquele ano, quando, na cerimônia do Quartel General de Brasília, defendeu o golpe militar de 1964 e se pronunciou mais uma vez contra a corrupção. O general, até aqui, jamais se pronunciou sobre a prisão de Nuzman e sobre as acusações. E sobre estar tão perto, em cargo de confiança, e não ter visto.
Dois meses depois de dar baixa, estava ombro a ombro com Nuzman, na condição de Diretor de Comunicação e Educação Corporativa do COB. Só deixou o COB em 9 de novembro de 2017, um mês depois da prisão do companheiro por corrupção ativa, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e enriquecimento ilícito. Na ocasião, de acordo com reportagens publicadas na Folha e no Estado de São Paulo, a assessoria do COB informou sobre a saída do general que “a saída dele já estava prevista, por motivo pessoal, diante da decisão de voltar a morar em Brasília”.
Com salário, de acordo com os dados do COB, pelos valores de outubro, mês anterior à saída, de R$ 42.951,61.
Nesses sete anos lado a lado com Nuzman, o homem que traçou as estratégias de inteligência do Comando Militar da Amazônia, foi Chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia e depois desenhou a ação da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), e hoje a voz mais ouvida para se saber sobre a estratégia de intervenção no Rio e combate ao crime, não identificou no parceiro do lado a execução contínua dos crimes de corrupção ativa, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e enriquecimento ilícito.
No dia 5 de outubro de 2017, a força tarefa da Operação Lava Jato no Rio do Ministério Público Federal e a Polícia Federal desencadearam conjuntamente ações que levaram a prisão do comandante do COB. Além da prisão na mansão do Jardim Pernambuco, foram efetuadas buscas e apreensões na sede do COB, na Barra da Tijuca e do Comitê Rio 2016. Todos com mandados individualizados.
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PS do DCM: O general Heleno também é eleitor de Jair Bolsonaro. “Foi meu cadete. Ele é meu candidato a presidente”, disse ao site de extrema direita Antagonista. “No atual quadro político, não tem ninguém melhor que ele.”