Glauco, um ano depois

Atualizado em 8 de março de 2011 às 6:36
Glauco

Faz um ano que o cartunista Glauco morreu.

Não sei se por coincidência, recebi no Diário cartas de duas pessoas adeptas do Santo Daime, ambas em espanhol. Uma delas me chama de “ignorante” por não acreditar nos poderes da ayahuasca, a beberagem que o Daime impõe aos fiéis. A outra relata suas supostas curas exatamente pela ayahuasca.

Para mim, para reproduzir uma frase do Duque de Wellington, quem acredita que a ayahuasca cura acredita em tudo.

Por tudo isso, resolvi republicar um dos textos que escrevi sobre a morte de Glauco.

RECEBI em Londres com tristeza a notícia da morte de Glauco e seu filho de 25 anos, Raoni. Pensei imediatamente, ao ler sobre o caso, que para ele foi uma benção não ter sobrevivido ao filho.

A última bênção.

Numa das histórias mais pungentes das tragédias gregas, o pai já velho que perde um filho reflete, arrasado: “Até o último dos dias, ninguém pode realmente dizer que teve uma vida feliz.”

Depois, observei no twitter as primeiras reações das pessoas. Consternação, e duas acusações constantes. E comuns em situações dessa natureza. A primeira ao Brasil.  Ao “estado das coisas” no país. A segunda a si próprios. “Somos todos culpados” pelo que aconteceu.

Acho um duplo engano. Meu pai uma vez disse que já pagava um preço alto pelos erros que cometia, e não podia pagar também pelos que lhe atribuíam. Ouvi aos 22 anos esta frase, pronunciada num debate, e três décadas depois ainda a lembro com clareza pela sabedoria simples encerrada nela.

Tento ficar com minhas culpas, que já não são poucas, sem inventar outras.

O que aconteceu com Glauco e Raoni foi uma coisa chamada vida. Precária, instável, frágil. A mandala dos budistas, uma imagem feita com grãos de areia, traz exatamente essa mensagem. Um vento, um sopro, e tudo se desfaz. Os samurais acordavam a cada dia pensando que poderiam não acordar no dia seguinte. Os romanos diziam uns aos outros: “Memento mori”. Lembre-se de que vai morrer.

Basicamente, o sentido disso tudo é: tome hoje o sorvete que quer, ou diga a um amigo como ele lhe é caro, ou dê um beijo em sua velha mãe. Porque pode não haver amanhã. É a vida.

As circunstâncias da morte de Glauco e Raoni foram surgindo depois. Uma igreja fundada por ele, um rapaz que a frequentava, uma arma, uma ameaça, o filho que aparece, os tiros fatais. A dor. As especulações em torno da ayahuasca, a  beberagem alucinógena que se toma em igrejas como a de Glauco, o Santo Daime, que exerce um fascínio enigmático sobre uma classe tão  tradicionalmente avessa a religiões como a dos jornalistas.  O PHD Benny Shannon,  professor do Departamento de Psicologia da Universidade Hebrew, publicou um livro sobre os efeitos da ayahuasca na mente. “Quando poderosos, consistem de imagens  majestosas comparáveis a filmes cinematográficos de natureza fantasmagórica”,   escreveu Shannon.

Estaria o autor dos disparos sob a ação da ayahuasca?

Questões como essa poderão ser esclarecidas.  Mas há perguntas para as quais não haverá jamais resposta. Uma delas: por que Raoni tinha que chegar naquele momento?

Não foi obra de um bandido que arrombou uma porta ou a encontrou aberta.

Não foi o Brasil, não fomos nós.

Foi, segundo as testemunhas, um rapaz perturbado. Que terá que responder pelo que fez.

E foi o conjunto de acasos, coincidências, circunstâncias, mistérios, absurdos e fatalidades a que se dá o nome de vida.