Publicado na Rede Brasil Atual
O professor e sociólogo Jessé Souza não esconde que o seu objetivo é ambicioso: reescrever a história da formação da sociedade brasileira, confrontando pensadores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. A premissa de A Elite do Atraso – Da Escravidão à Lava Jato (Casa da Palavra/Leya), que teve lançamento ontem (9) à noite em São Paulo, é de que os chamados donos do poder perpetuaram um modelo baseado na servidão, simbolizada pela “ralé” dos dias atuais.
“É uma elite que entrega o país, sempre entregou, sempre produziu golpes de Estado”, afirmou o autor, ao lado do jornalista Paulo Henrique Amorim, durante conversa aberta ao público, presente em número bem maior que os 168 lugares do auditório.
No livro recém-lançado, o autor procura demonstrar que a corrupção não é o problema central do país, “mas a manutenção secular de uma sociedade desigual”. Patrionalismo e populismo são conceitos usados para evitar avanços de setores populares e identificar as origens dos males brasileiros: o vício é o Estado, a virtude é o mercado.
Um pensamento que não só predomina, como é amplificado pela mídia tradicional, que Jessé Souza compara, ironicamente, à da Coreia do Norte, na medida em que tem “uma opinião só”. Ele cita a Rede Globo como “o real partido, a boca do capital financeiro”.
O sociólogo critica a falta de uma formulação “de esquerda” para a análise social. Em artigo, ele já afirmou que a predominância de uma leitura “liberal e conservadora” fez a esquerda ser sempre dominada pelo discurso do adversário.
Em uma plateia com as presenças de líderes do PT (Rui Falcão e José Américo) e do Psol (Gilberto Maringoni), além do professor Ladislau Dowbor, o sociólogo e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) identifica nos antigos pensadores raízes da classificação do brasileiro como “vira-lata”. “A classe média está subjugada há 100 anos por um discurso do qual é portadora”, diz o atual professor titular de Filosofia na Universidade Federal do ABC.
E a elite econômica brasileira mantém o modelo da elite escravagista. “De rapina, mesquinha”, como define o autor. “Não planeja o futuro a longo prazo. Ela quer o agora, quer vender o petróleo agora, a água.”
Assim, a Operação Lava Jato encaixa-se no modelo histórico que quer condenar o Estado, identificado apenas como fonte de corrupção, ignorando o que o sociólogo chama de “verdadeiro roubo”, que são, por exemplo, os juros, os oligopólios, a dívida pública, planos de saúde ligados a bancos. “O sistema político inteiro foi montado para ser corrupto, para ser comprado pelo mercado.”
Mais uma vez em nome da corrupção e com apoio da mídia, o recente ataque foi seletivo (a apenas um partido, o PT, e de base popular), buscando reduzir um incipiente processo de transformações e melhorias sociais nos governos recentes a um período de “pilhagem do Estado”, fazendo a demanda moral por igualdade regredir no Brasil.
“A Globo e a Lava Jato criminalizaram a demanda por igualdade”, afirma. Para o sociólogo, nomes como o de Jair Bolsonaro são o resultado direto do “casamento” entre emissora e força-tarefa.
Estado “mordomo”
No fundo, diz Jessé, não se percebe no país a importância do pensamento. “Nosso comportamento não é automático, é guiado por ideias”, diz. Ele analisa, no livro, a perda de poder político da elite paulista durante a era Vargas e critica o pensamento predominante que faz do Estado o “mordomo” da história, o suspeito preferido, teoria adequada para os interesses da elite econômica, tornando possível “fazer do mote da corrupção apenas do Estado o núcleo de uma concepção de mundo que permite a elite mais mesquinha fazer todo um povo de tolo”.
Essa concepção, escreve, “não é apenas de Sérgio Buarque nem é algo dos longínquos anos 1930”, mas é “Brasil 2017 na veia!”.
Com a elite detendo o capital econômico, coube à classe média o “capital cultural”, a valorização pelo conhecimento. Patrimônio que estaria sendo “ameaçado”, diz Jessé, pela chegada de camadas populares à universidade.
“A classe média se apavorou.” Ele faz a ressalva de que não se trata de uma camada social uniforme: sempre teria existido uma parcela “pró-fascista”, mas também uma parte mais liberal, que igualmente foi para as ruas e hoje estaria sentindo “vergonha” do resultado das manifestações.
O escritor cita um outro sociólogo, o alemão Norbert Elias, para destacar que a civilização europeia se origina justamente a partir da ruptura com a escravidão. Sem esse rompimento, em termos históricos e sociais, no Brasil não há preocupação com os mais pobres. “Você não se condói do sofrimento do outro.”
Paulo Henrique Amorim pergunta ao sociólogo sua opinião sobre a obra “seminal, secular”, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (cujo livro Dependência e Desenvolvimento na América Latina, escrito com o chileno Enzo Faletto, está completando 50 anos). O autor responde que, durante a elaboração de seu livro, releu formulações sobre a teoria da dependência: “Não consegui ver nada de importante ali”.