Publicado originalmente no Brasil de Fato:
Por Lu Sudré
Desemprego recorde, impactos de uma reforma trabalhista que transformou a precarização e informalidade em regra e a consequente exposição a um vírus letal que já ceifou a vida de mais de 250 mil pessoas.
Os elementos que integram a vida da classe trabalhadora brasileira em meio à pandemia do novo coronavírus, e mesmo antes dela, tornam a atual conjuntura do mundo do trabalho a pior das últimas três décadas.
É o que avalia Jorge Luiz Souto Maior, renomado jurista brasileiro, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15º Região e professor de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Em entrevista ao Brasil de Fato, Souto Maior afirma que a pandemia evidencia o acúmulo de equívocos históricos do Estado brasileiro na distribuição da riqueza e na exploração do trabalho.
Uma retórica “equivocada e perversa” que defende a redução da proteção social dos trabalhadores como uma condição determinante para o desenvolvimento da economia, prática exacerbada pelo governo Bolsonaro.
O jurista ressalta que, sob a argumento do enfrentamento à crise econômica aprofundada pela covid-19, a gestão elaborou medidas provisórias que autorizaram a redução de salário, o aumento da jornada com bancos de horas sem a devida compensação de pagamento, a postergação do pagamento do FGTS, entre outros projetos.
“Uma série de medidas que foram no sentido do aumento da precarização, do sofrimento do trabalho, dos riscos enfrentados pelo trabalhador e com o aumento, consequencial, dos problemas econômicos. Temos, com esse efeito de menor distribuição da riqueza e menor consumo, o aumento do desemprego”, explica Souto Maior, também presidente da Associação Americana de Juristas (Rama Brasil).
De acordo com dados divulgados na semana passada, a taxa média de 13,5% de desocupação em 2020 foi a maior já registrada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“O que se verificou, infelizmente, é que o atual governo projetou na pandemia uma oportunidade para aprofundar projetos neoliberais. Para levar mais a fundo os mesmos erros”, critica o jurista.
Ele completa que mesmo as pessoas empregadas vivem a lógica de exclusão por estarem em postos extremamente precarizados, sujeitos, por exemplo, ao contrato de trabalho intermitente.
Na opinião de Souto Maior, a perspectiva para este ano no que tange os direitos trabalhistas é preocupante, ainda mais com a proliferação da covid-19.
“Quanto mais o governo atual estiver abalado politicamente, quanto mais as questões ligadas ao mau trato da pandemia representarem iniciativas e aprofundamentos da lógica de um impeachment ou de outras fragilizações, o que se pode prever que venha na sequência é o oferecimento de uma reforma trabalhista, de um novo avanço sobre os direitos trabalhistas para agrado do poder econômico”, analisa.
Confira a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: Como a covid-19 impactou o mundo do trabalho no Brasil?
Jorge Luiz Souto Maior: A covid-19, uma pandemia mundial, é um problema muito grande do ponto de vista sanitário, tem ceifado as vidas de milhões de pessoas mundo afora. E no Brasil já ultrapassou a marca de 240 mil.
A covid-19, os óbitos, o sofrimento, tudo isso já seria por si só um grave problema social, econômico e humano. No entanto temos acumulado um histórico de equívocos, do meu ponto de vista, erros mesmo, que referem-se ao modo de distribuição da riqueza socialmente produzida, o que tem elevado o número de pessoas em condição de miséria e uma exploração maior do trabalho em uma lógica de acumulação da riqueza e não de distribuição.
Uma exploração que, dentro dessa lógica, faz com que as pessoas trabalhem mais e ganhem menos. Trabalhem em péssimas condições e em condições pioradas do ponto de vista das horas de trabalho e dos direitos trabalhistas que foram sucateados intensamente na reforma de 2017, mas que já vinham sendo sucateados, de certa forma, desde a década de 80 na realidade brasileira.
Este acúmulo do mau tratamento das relações de trabalho, sempre a partir de uma retórica equivocada e perversa também, de que a redução da proteção social dos trabalhadores e trabalhadoras é condição importante para o desenvolvimento da economia e do país. O alegado “Custo Brasil”.
Esse pressuposto, no entanto, só tem gerado o aumento do sofrimento, o aumento da exploração do trabalho, da acumulação da riqueza, da evasão das divisas porque esses “exploradores” do trabalho nacional são, em grandes medidas, internacionais e levam o fruto dessa exploração para os países de origem e um abandono pleno do ponto de vista de um projeto de Estado, de Nação, que elimina toda a rede de proteção social no que se relaciona à saúde, educação e transporte público. Da seguridade social como um todo.
Temos um esfacelamento do Estado, dos direitos sociais, dentro de uma lógica altamente destrutiva. Esse aspecto, de empobrecimento da classe trabalhadora e precarização da vida, da maioria da população brasileira, faz com que os efeitos da pandemia sejam potencializados.
Se pega as pessoas em condições precárias de vida e pessoas que dependem de continuar trabalhando de algum modo precário para sobreviver, e isso faz com que elas se exponham mais aos riscos, com que contribuam, de certo modo, com a proliferação do vírus e consequentemente temos esse número aumentado.
A pandemia por si só é um problema, mas é um problema ainda maior por estar inserida em um país que, sobretudo, tem desconsiderado a relevância dos direitos sociais e das formas de controles da atuação econômica. O maior número de vítimas da pandemia da covid-19 são as trabalhadoras e trabalhadores que vivem na periferia das cidades.
Essa desigualdade social que as pessoas dizem que a pandemia revelou é uma verdade. Mas outra verdade que precisa ser dita é que essa desigualdade social foi construída. Ela não é do nada, foi construída a partir de políticas mal conduzidas. Ou conduzidas com propósitos errados. É nesse sentido que vivenciamos essa grande dor nacional no que se refere à pandemia.
E sem perspectiva de que as coisas possam ser acertadas, consertadas. Para isso é preciso reconhecer o que se fez de errado, reconhecer a necessidade de maior distribuição da riqueza, da participação do Estado, da lógica do direito social. O que se verificou, infelizmente, é que o atual governo projetou na pandemia uma oportunidade para aprofundar projetos neoliberais. Para levar mais a fundo os mesmos erros.
Sob a retórica de melhoria ou de enfrentamento econômico dos problemas da pandemia, elaboraram medidas provisórias que autorizaram redução de salário, redução de contratos, ou seja, o aumento da jornada com bancos de horas sem a devida compensação de pagamento, com a postergação do pagamento do FGTS, com a supressão da atuação fiscalizatória dos auditores fiscais do trabalho, da inspeção do trabalho.
Uma série de medidas que foram no sentido do aumento da precarização, do sofrimento do trabalho, dos riscos enfrentados pelo trabalhador e com o aumento, consequencial, dos problemas econômicos. Temos, com esse efeito de menor distribuição da riqueza e menor consumo, o aumento do desemprego.
Não só o aumento do desemprego, mas o fato que as pessoas no emprego estão vivenciando uma lógica de exclusão. Os empregos formais estão extremamente precarizados. São pessoas trabalhando com bancos de horas sem pagamento, sem representação sindical diante do esfacelamento da organização dos sindicatos e por aí vai.1
Balanço divulgado pelo Ministério da Economia na semana passada (Caged) registrou a abertura de mais de 142 mil empregos com carteira assinada em 2020. No entanto, desse total, 73,1 mil dos contratos firmados foram na modalidade de trabalho intermitente. O que seria o trabalho intermitente? Ele é um elemento fundante deste cenário de retirada de direito que nos descreve?
O trabalho intermitente é essa criação da reforma trabalhista de 2017, criada sob a retórica de aumentar postos de trabalho e reduzir o desemprego, uma fórmula mágica de inserção no mercado de trabalho por hora trabalhada.
Então o trabalhador recebe pela hora trabalhada em um dia específico. Mas não necessariamente ele tem que trabalhar todos os dias. Trabalha sob demanda. Isso possibilita que alguém que precise de trabalho, de uma certa quantidade, não tenha que se vincular com uma pessoa especificamente.
A empresa pode se vincular a cinco, seis ou sete trabalhadores e chamá-los para o trabalho em momentos aleatórios, em horas separadas. De forma que ele não tenha empregados fixos, possibilitando a redução do número de trabalhadores vinculados a uma empresa no sentido de uma organização coletiva.
Os trabalhadores ficam pulverizados, prestando serviços a mais de uma empresa ao mesmo tempo e sempre em péssimas condições. Não têm uma organização sindical e não têm vínculo social com o ambiente de trabalho.
A reforma trabalhista criou esse mecanismo de maior exploração do trabalho e diminuição da resistência da classe trabalhadora e que contribui para esse estágio de precarização. Redução de salário e condições degradantes de trabalho.
O fato é que esse momento histórico que estamos vivendo, estão sendo incentivadas essas saídas egoístas. Entramos na pandemia e imaginamos que as pessoas assumiriam a importância e centralidade dos trabalhadores e da solidariedade social que advém disso.
No entanto, o que estamos percebendo é um processo acelerado do egoísmo e de saídas oportunistas para explorar mais o trabalho. Tanto por isso, mais da metade dos postos de trabalho criados são esses trabalhos precários que não concebem uma lógica de inclusão e estão imbuídos dessa visão de exploração, pura e simples, dos seres humanos na perspectiva de redução de custos e do “salve-se quem puder”.
Os números não revelam apenas um problema de precarização das relações de trabalho. Revelam um problema sério e muito grave de destruição de qualquer esperança de ordem moral. A demonstração clara que o que impera é a lógica do egoísmo, do ‘todos contra todos’ e que, portanto, se o efeito para o conjunto da sociedade for ruim, pouco importa se meus lucros estão mantidos.
Estamos piorando em todos os contextos sociais e isso não pode ser atribuído apenas à pandemia. Tem que ser atribuído ao modo como historicamente lidamos com as relações de trabalho no Brasil. Que preservam traços de escravismo, racismo, preserva ainda traços de machismo.
Temos um acúmulo de problemas sociais, políticos e culturais que nos trouxeram até aqui e que nos apresentam essas soluções para os problemas da pandemia como saídas imediatas e individuais. Não temos projeto de Nação, um projeto de Estado, um governo que tenha isto como visão. O que se tem apenas é projeto de preservação de poder e ajuste de interesses.
O Supremo Tribunal Federal trouxe à pauta o julgamento das ações que pedem a declaração de inconstitucionalidade do contrato de trabalho intermitente. A perspectiva é que seja declarado constitucional, mesmo com todos essas consequências já sentidas pela população?
O STF, na questão trabalhista, especificamente, desde 2014, portanto, não é de agora, tem se posicionado numa linha econômica do direito. Uma visão de que primeiro vem o interesse econômico, imediato, não é um interesse econômico final. Me parece uma lógica invertida porque os direitos sociais não contrariam o interesse econômico como projeto de nação, pelo contrário. Mas, visões mais reduzidas, imediatistas e setoriais vislumbram a redução dos direitos sociais como mecanismos de aumentar o potencial de concorrência. Não só interno, mas, sobretudo, externo.
Essa linha econômica reduzida é o que tem conduzido o raciocínio do STF no que se refere aos direitos sociais. Em suas decisões, reiteradamente, o Supremo reforça isso. Dizendo que é preciso reduzir os direitos sociais, o custo do trabalho, para o favorecimento da “modernização” das relações de trabalho numa linha de satisfação dos interesses econômicos.
Considerando isso, a previsão que se tem, a tendência, é que o Supremo declare o trabalho intermitente como constitucional, que é repleto de inconstitucionalidade. Sobretudo diante da possibilidade que o trabalho intermitente confere de um trabalhador ter uma relação de emprego recebendo menos que o salário mínimo em razão do número de horas e dos dias trabalhados.
E do fato que a relação de emprego não representa aquilo que deveria representar do ponto de vista do projeto constitucional, tal qual previsto no Artigo 7 e em seus incisos correspondentes, uma forma de inclusão social e econômica dos trabalhadores.
A relação de emprego formalizada pelo contrato intermitente é uma relação de emprego que visa unicamente a satisfação dos interesses econômicos imediatos de algumas empresas. E são poucas empresas que podem se valer dele, isso é importante destacar.
Não é do conjunto total das empresas que se fala quando citamos o contrato intermitente. São só grandes empresas. Para uma pessoa que tem um boteco na esquina ou uma lojinha com cinco trabalhadores, essas possibilidades de contratação precária não têm a menor relevância. Não trazem benefício na dinâmica produtiva e comercial.
É só para grandes empresas. É um projeto, além de tudo, que busca hegemonia, monopólios, favorecer grandes conglomerados econômicos. E pequenas empresas, seduzidas pelo discurso e por considerarem que participam da classe capitalista efetivamente acabam reproduzindo essas falas e esses valores e defendem esses mecanismos que sequer podem utilizar. E que lhes maltrata, inclusive na concorrência que eventualmente tenham com grandes empresas.
Mas a previsão, como você me pergunta, talvez seja que o Supremo declare constitucional apesar de tudo isso. Como declarou agora como constitucional a Medida Provisória que permitiu a redução de salários por acordo individual. Sabendo como nós sabendo que, como prevê a Constituição, que qualquer negociação de direitos trabalhistas ocorre no âmbito das relações coletivas. Com os sindicatos. E a MP veio colocar os sindicatos de lado para dizer que o trabalhador pode negociar individualmente com a empresa a redução dos direitos.
E o STF fez letra morta da Constituição e declarou constitucional o texto sob o argumento de se tratar de uma necessidade econômica emergencial. Só não disse e não percebeu, talvez, que essa saída econômica emergencial é o que está aprofundando nossos problemas econômicos.
Tem toda uma discussão sendo apresentada sobre a responsabilidade ou não do patrão em vacinar seus empregados. Como enxerga esse processo?
Essa é uma questão difícil porque ela divide, de certo modo, representantes, integrantes ou pessoas ligadas aos interesses da classe trabalhadora. Baseado na ideia de que o empregador é responsável, e é mesmo juridicamente responsável pela preservação do meio ambiente de trabalho e conferir aos trabalhadores e trabalhadoras um ambiente de trabalho que possa preservar a saúde e a segurança, muita gente atribui ao empregador essa responsabilidade também de promover a vacinação de seus trabalhadores.
E que isso seria, em certa medida, até mesmo uma conquista de uma luta sindical perante empregadores que poderiam, economicamente, fazer isso. Alguns sustentam, inclusive, que seria uma forma de estímulo para uma maior multiplicidade de vacinas, que é preciso maior quantidades.
Mas, a meu ver, há um desvirtuamento dessa questão porque essa vacinação pelo empregador seria uma modalidade de vacinação privada. Esse empregador teria que adquirir essas vacinas em um mercado aberto amplamente.
A possibilidade de mercantilização da vacina nesse momento histórico em que estamos vivendo representaria um reforço da desigualdade e um reforço da lógica de privilégios para uma casta social. Quem tem condições econômicas teria condições de se vacinar porque de algum modo essas vacinas seriam adquiridas, e, enquanto isso, a grande gama da população brasileira estaria fora dessa amplitude.
Muita gente sustenta que isso auxiliaria no sentido do dinheiro público poderia ser gasto, direcionado pra menos pessoas. Mas isso representa, na verdade, uma diminuição potencial da pressão necessária. Infelizmente estamos vivendo uma situação em que é preciso muita pressão social de todos os níveis para que o governo cumpra sua obrigação, até agora não cumprida, de ter uma política definida de vacinação. De compra e produção de vacinas.
Essa é uma necessidade emergencial de um projeto público para essa realização dentro de uma lógica de igualdade, de tratamento igualitário das pessoas. Sabendo e preservando as necessidades mais emergenciais dos grupos de risco, para que essa vacinação seja, inclusive, eficiente do ponto de vista de seu efeito.
Pouco efeito produz, na lógica de imunização, que uma parcela de privilegiados seja vacinada se nessa parcela não estejam incluídos os de maior risco, que não estejam incluídos os que estão na linha de frente, que estão em uma mobilização mais intensa e mais expostas ao risco de contágio.
É preciso uma imunização pública, integrativa de todas as pessoas e que, ao mesmo tempo, seja inteligente. Organizada de forma inteligente. Os indevidos privilégios, nesse instante, como sempre, são contraproducentes. Vão contra o objetivo da imunização e da preservação das vidas de uma forma muito grave.
O efeito é a diminuição da pressão sob o governo que fica mais à vontade para ir lentamente porque as classes dominantes estão se safando. E aí deixaríamos, de novo, o desastre da desigualdade social se produzir em nossas vistas.
E a classe trabalhadora tem uma função muito relevante nisso. O meio sindical, as centrais sindicais, com força política mobilizadora, inclusive. Mas, para conduzir esse processo na lógica de uma vacinação pública, se o meio sindical e as centrais estiverem envolvidas na defesa de seus próprios interesses ou associados, há uma redução de força de mobilização social e reforço da exclusão.
Diria até mais: historicamente até de diminuição da legitimação no meio sindical na perspectiva de um movimento condutor de pautas importantes para a superação da exclusão. Precisamos sair da lógica da defesa dos próprios interesses.
Daqui a pouco são associação de juízes vacinando seus juízes, daqui a pouco é a Organização dos Advogados vacinando advogados, sindicatos que conseguiram que empregados da Nestlé fossem vacinados. E pronto. Como saímos da pandemia? Piores do que entramos.
Nenhuma lógica de solidariedade e sim do egoísmo, do individualismo, e o resultado serão pessoas morrendo. Estamos falando em 240 mil mortes, mas o dado está aumentando exponencialmente nos últimos meses e vai aumentar mais ainda porque a cegueira e a irresponsabilidade do ponto de vista governamental está estimulando práticas sociais que promovem o contágio em nível cada vez mais elevado.
É preciso que as pessoas que têm influência em movimentos políticos, econômicos e sociais se envolvam efetivamente na busca por uma vacinação pública, igualitária, gratuita.
Também há dúvidas sobre como lidar com a infecção pela covid-19 no ambiente de trabalho e como o trabalhador poderia provar isso. Como lê a decisão do STF de considerar a contaminação como um acidente de trabalho?
É preciso pontuar isso com uma técnica jurídica. Uma das medidas provisórias tinha um dispositivo que dizia que a aquisição da doença, por si, não é considerada acidente de trabalho. Esse dispositivo foi considerado inconstitucional pelo Supremo.
Mas, não necessariamente disse o contrário. Que a aquisição da doença seria objetivamente um acidente de trabalho. Ainda há muita discussão jurídica sobre isso. Embora não se tenha mais a lei que se pretendeu ter, que excluía completamente ou criava uma dificuldade ainda maior para consideração da covid-19 como doença do trabalho, há toda uma discussão jurídica anterior em que a doença adquirida pelo trabalho, qualquer doença, para ser considerada um acidente de trabalho, tem que ter um nexo de causualidade.
É preciso demonstrar que a doença foi adquirida em função do trabalho, de acordo com a jurisprudência dominante. A decisão do Supremo não eliminou esse problema, ainda assim os trabalhadores que adquirem a covid-19 estão tendo que demonstrar que adquiriram a doença no ambiente de trabalho o que é uma prova muito difícil de ser feita.
Do meu ponto de vista, jurídico, acho que é preciso considerar que um trabalhador que está sendo submetido ao trabalho 8h por dia, que tem que se deslocar de casa para o trabalho, que a sua vida é pautada pela lógica do trabalho. Então, a presunção que se deve ter é que se esse trabalhador fica doente pela covid, esse contágio se deu em razão do trabalho. Seja no ambiente de trabalho ou no transporte para o trabalho.
A não ser que o empregador prove o contrário. É uma prova difícil, mas também é difícil a prova do trabalhador de provar que adquiriu a doença lá. Do ponto de vista racional e lógico, é muito mais racional entender que a doença adveio das condições do trabalho do que o trabalhador ter se contagiado em casa.
Não vejo porque, juridicamente, os trabalhadores teriam que estar sendo submetidos a essa dificuldade de provar. Esse nexo de causualidade é presumível e só poderia ser afastado por uma prova muito contundente no sentido contrário.
Uma prova contundente que talvez não tenha condições de ser feita. Então, que se proteja os trabalhadores. Afinal de conta, os que estão trabalhando durante a covid-19 estão salvando vidas, milhões de vidas.
E é o mínimo que a sociedade, como um todo, assegure a essas pessoas a proteção das suas vidas contra o adoecimento. Quando um entregador que vai na porta de alguém levar um produto, um produto que foi fabricado, transportado, que tem as mãos de diversos trabalhadores, a pessoa que recebe o produto em casa, para sua alimentação ou satisfação de alguma necessidade pessoal, tem que perceber que isso só foi possível porque muitas pessoas colocaram suas vidas em risco.
É inadmissível que a gente conceba uma lógica jurídica que gere mais sofrimento para essas pessoas.
Quais são os prognósticos de ataques aos direitos dos trabalhadores em 2021? Há alguma pauta prevista?
Historicamente, sobretudo de 2016 pra cá, quando isso se intensificou, toda vez que um governo se sente abalado do ponto de vista de sua estruturação política, do ponto de vista midiático, de uma pressão social, acabam buscando alinhamento com o poder econômico.
O que também ocorreu em outras épocas do Brasil, inclusive no governo da presidenta Dilma, e mesmo com Congresso Nacional e STF, quando instituições se veem politicamente abaladas.
Porque o poder econômico é definidor do que vai acontecer com as estruturas jurídicos-políticas. Esse alinhamento de interesses com poder econômico em geral é pautado pelo acatamento da lógica de redução de direitos dos trabalhadores. São vários momentos históricos em que um governo politicamente e midiaticamente abalado preconiza, logo na sequência, uma reforma trabalhista. Preconiza legislações e medidas provisórias no sentido de uma promessa no setor econômico para mostrar usa utilidade.
“Nós podemos ser úteis” reduzindo direitos dos trabalhadores. O que podemos vislumbrar pela frente é, e o trágico da história é isso: quanto mais o governo atual estiver abalado politicamente, quanto mais as questões ligadas ao mau trato da pandemia representarem iniciativas e aprofundamentos da lógica de um impeachment ou de outras fragilizações, o que se pode prever que venha na sequência é o oferecimento de uma reforma trabalhista, de um novo avanço sobre os direitos trabalhistas para agrado do poder econômico.
É exatamente o que está acontecendo nesse instante. Muitas forças estão preconizando o impeachment e o que o ministro da Economia apresentou recentemente?
Uma proposta de decreto publicada em 21 de janeiro de 2021, cujo conteúdo será a alteração de mais de 200 dispositivos da legislação do trabalho em nível de organização, de fiscalização mas também em nível de direitos trabalhistas propriamente ditos.
Esta alteração profunda, pretende-se que seja promovida por meio de um decreto. Ou seja, sem passar, inclusive, pelo processo legislativo. E a grande mídia se silencia a respeito.
Fala dos problemas do presidente usando de Jet Ski, atacando a grande mídia, mas quando o Ministério da Economia preconiza que vai fazer uma alteração profunda da legislação do trabalho, retirando ainda mais direitos dos trabalhadores, por meio de um decreto, ferindo frontalmente a Constituição porque isso não pode ser feito por meio de decreto.
Só poderia por via legislativa e nem por via legislativa dado que a Constituição prometeu para os trabalhadores uma legislação que ampliasse duas condições sociais, mas diante desse flagrante inconstitucionalidade, desse ataque frontal à Constituição e aos direitos dos trabalhadores, a grande mídia não fala uma palavra porque a ela interessa.
Estamos diante de um problema sério porque há um ponto de conciliação das classes dominantes que é aumento da exploração da classe trabalhadora.
Esse ponto já foi percebido há muito tempo por vários governos e esse governo atual utiliza dele para, inclusive, esgarçar as possibilidades democráticas, para ver até onde essas instituições ou o poder econômico está mesmo disposto a proteger a democracia ou o Estado democrático de direito.
Ele usa um decreto, inconstitucional, para calar esses que o criticam e consegue, com isso, esgarçar, esfacelar e fragilizar as instituições democráticas. O resultado, concretamente, pode ser o avanço do autoritarismo.
Uma situação onde não haverá mais forças democráticas para impedir um regime totalitário. Vendidos ou comprados que foram pelas pautas de supressão de direitos trabalhistas.
Isso fez Getúlio Vargas em 1937. É preciso conhecer a história para saber como as coisas aconteceram e como estão se repetindo, de certo modo, mas as pessoas não estão vendo.
Nesse bolo todo o governo promoveu, inclusive, o aumento da venda de armas. Não tem o aumento de vacinas, mas de armas sim. Estamos vivendo um momento muito grave, sobretudo para a classe trabalhadora, que será o ponto de equilíbrio dessa conciliação desastrosa.
preciso que a classe trabalhadora também se perceba nesse processo histórico. É preciso que a organização coletiva dos trabalhadores tenha percepção do que está acontecendo e não fique lutando por vacina de seus associados. É uma outra forma de conciliação porque essa vacinação só pode ser feita se autorizada pelo governo. Seria também um modo da classe trabalhadora ser devedora do governo que aí está.
Uma dívida que algum dia será cobrada. Como já disse o pai do neoliberalismo, Friedmann, não existe almoço de graça.
Tivemos um crescimento brusco de trabalhadores de apps durante a pandemia, inclusive com uma mobilização inédita em julho do ano passado. Temos alguma perspectiva de regulamentação trabalhista desse setor?
Teria que ser prioridade máxima do governo, da população e da sociedade brasileira como um todo a formalização de trabalho dos entregadores e motoristas de Uber. Pessoas que estão colocando suas próprias vidas em risco ganhando pouquíssimo, trabalhando intensamente, em uma lógica cada vez mais precária e concorrencial entre si. Ou seja, um pacto necessário.
A sociedade brasileira está diante do caos e vamos começar a acertar os nossos problemas, primeiro formalizando o trabalho dessas pessoas que salvaram tantas vidas e merecem, no mínimo, essa forma de agradecimento. Que implica na limitação da jornada de trabalho, na possibilidade de organização sindical, dias de descanso, férias.
Implica em uma lógica de civilização da lógica de trabalho e não esse trabalho que realiza do ponto de vista quase escravo. Que se vende como liberdade de trabalho.
A liberdade de vender horas de trabalho durante 18 horas não é liberdade. É escravidão. É só um discurso de liberdade.
Teria que ser a prioridade também das instituições voltadas a aplicação do Direito do Trabalho, Justiça do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, que de fato está envolvido nessa questão, mas mesmo depois dessa greve histórica, um dos principais movimentos sociais do Brasil nos últimos anos, não repercutiu.
Infelizmente, uma sociedade que está deturpada em seus valores sociais. Impulsionada ou pelo egoísmo ou pelo desânimo. O fato é que não repercutiu e se você me pergunta o que se projeta para frente é que as coisas não tenderão a melhorar se não acontecerem mudanças profundas no nosso modo de ver a realidade e dos compromissos que assumimos diante dessas situações.
Compromissos individuais, que seja, mas compromissos da relevância da alteração do rumo das coisas. Não haverá um salvador que venha salvar todo mundo. E não será também, pura e simplesmente, com o depósito do voto nas urnas em 2022. Esta mudança só institucional, sem uma mudança profunda que seja compreendida pelo conjunto das pessoas, não é capaz de promover as alterações que precisamos.
E nós precisamos de muitas. Precisamos passar para um projeto inclusivo. Começamos o ano de 2021 com um número recorde de pessoas abaixo da linha da pobreza. Estamos só piorando. Precisamos de um projeto que não será feito pela redução de direitos sociais, por meio da redução da rede de proteção social. Pelo contrário. Temos que caminhar em outro sentido.
Vimos agora a relevância do SUS mas sabemos o quanto o SUS historicamente foi sucateado. O tanto de dinheiro que deveria ter sido direcionado para o SUS e não foi. Dinheiro público. Dinheiro produzido pelos trabalhadores e trabalhadoras. A riqueza produzida pelo trabalho. Dinheiro que foi retirado das instituições públicas para outras finalidades.
Não dá pra fazer tudo de uma vez, mas se formos acertando a cada ponto que nos for sendo colocado já é bastante importante.
Então, se falamos do trabalho uberizado e da questão da inconstitucionalidade do trabalho intermitente, da covid como acidente de trabalho, se formos acertando em relação a alguns tópicos, no sentido de respostas adequadas para os problemas na perspectiva de evolução da sociedade brasileira como um todo, podemos pautar coisas maiores e mais relevantes. Do contrário, se continuarmos desprezando tudo isso, continuarmos errando, não há mínima esperança que acertemos no todo.
Esse é o pior momento da história do trabalho no Brasil? Tem paralelos a essa crise que podem ser traçados?
É muito difícil responder essa pergunta. Conhecendo bem o processo histórico do Brasil, a vida da classe trabalhadora nunca foi confortável. As relações de trabalho foram, em momentos históricos e por razões distintas, foram muito sofridas. Sobretudo o trabalho das mulheres e da escravização dos índios, negros e negras africanos e o que vem depois na primeira República.
O trabalho dos imigrantes no setor agrário, dentro da lógica da escravidão. Temos momentos históricos de grandes repressões, mortes, assassinatos de líderes sindicais. No campo, na cidade. Dizer que esse é o pior pode ser minimizar tantos outros momentos gravíssimos pelos quais passamos.
Mas diria que é muito apreensivo. Considerando os últimos 20, 30 anos, certamente é o pior momento. E que gera muita apreensão na perspectiva de futuro. Se nada for mudado, temos uma visualização trágica do que pode vir pela frente.
Mas eu acredito, meu discurso é sempre otimista, que as organizações sociais e trabalhistas possam perceber o fundo do poço em que estamos. E que haja uma reação que seja também institucional. Importante que as instituições participem na defesa da efetividade dos direitos sociais, humanos, fundamentais.
E que a sociedade perceba essa mobilização institucional, séria e verdadeira, nesse sentido. Para que possamos construir, enfim, um projeto de nação. Já passou da hora.
Eu ainda acredito que tenhamos chances de fazer isso e fico nessa esperança concreta, não pode ser uma desesperança total. Mas a esperança só pode ser motivada se as pessoas perceberem a gravidade. Sem a percepção da gravidade, não vão fazer nada e não fazendo nada, o caos parece inevitável.