Publicado no Consultor Jurídico (ConJur)
POR PEDRO CANÁRIO E MARCOS DE VASCONCELLOS
No dia 15 de dezembro de 2017, o presidente da Fecomércio do Rio de Janeiro, Orlando Diniz, conversava com um de seus advogados, Rafael Valim, responsável pelo compliance da instituição. Falaram de diversos assuntos, inclusive da preocupação de Diniz com uma página no Facebook destinada a atacar sua gestão à frente da federação, do Sesc e do Senac do Rio. Valim, então, sugere a contratação de um profissional da área para trabalhar nas redes sociais em prol da imagem do cliente.
Durante a conversa, é possível perceber o receio de Orlando Diniz mencionar nomes de pessoas e até de passar números de telefones de outros advogados que ele sugeriu a Valim procurar. A frase “tem boi na linha”, dita pelo advogado, colocou mais uma pulga atrás da orelha de Diniz, que parou de usar aplicativos de mensagens como o WhatsApp e passou a buscar meios mais sigilosos para falar com seus advogados.
O presidente da Fecomércio estava com medo de estar sendo grampeado. Naquele mesmo dia, o Superior Tribunal de Justiça o afastou do cargo, abrindo mais um capítulo da disputa política pelo controle do Sistema S do Rio de Janeiro.
Não dá para chamar o executivo de paranoico. O Ministério Público Federal ouviu tudo. E usou a conversa para justificar pedido de mandado de busca no escritório de Valim para apreender contratos de prestação de serviços advocatícios à Fecomércio do Rio. O pedido foi aceito pelo juiz Marcelo Bretas, titular da 7ª Vara Federal Criminal do Rio, onde correm os processos da Lava Jato no estado. Ele também autorizou a intimação do advogado para prestar esclarecimentos aos investigadores sobre esses serviços, “por supostos serviços fictícios, e de fato operador na parte jurídica de Orlando Diniz”.
Rafael Valim foi contratado para “revisar e reestruturar a política de compras e contratação e a política de patrocínios” do Sesc e do Senac. Cobrou pouco mais de R$ 3 milhões. Orlando Diniz é acusado de ter gastado R$ 180 milhões das entidades que preside durante quatro anos para contratar advogados para si próprio. O escritório de Valim não está entre os maiores contratos.
Mas, para o MPF, ambos são suspeitos. Orlando Diniz por “não ter apresentado nenhum documento comprobatório” de que os escritórios contratados efetivamente advogaram. Valim, por ter conversado com o cliente sobre assuntos sem relação direta com o contrato.
Contrainteligência
A partir do dia 15 de dezembro de 2017, tudo em Orlando Diniz passou a ser suspeito. De acordo com a narração do MPF, desde aquele dia, o executivo “reduziu drasticamente o uso do celular”. Para os investigadores, a mudança de atitude é culpa de Valim, que o alertou sobre os bois na linha. “Segundo a equipe de analistas, ficou patente que Diniz passou a ter enorme preocupação em passar informações por telefone”, diz o MPF, em petição enviada à Justiça Federal.
O MPF conclui que Orlando Diniz “não confia em telefone” e não gosta de tratar de informações em meios que deixam registro, como e-mail, mensagens de celular, WhatsApp ou Telegram. Em vez disso, um de seus interlocutores sugere o Wickr, aplicativo que apaga as mensagens enviadas e recebidas automaticamente e não tem servidores de armazenamento, como os outros dois aplicativos citados nas conversas.
Na petição, os procuradores da República chamam isso de “medidas de contrainteligência”, já que Orlando Diniz é “extremamente prevenido contra possíveis atos de investigações contra si”. O MPF viu no comportamento de Orlando Diniz “mecanismos normalmente utilizados por quem está inserido num contexto de franca atividade criminiosa”.
Entre esses “mecanismos”, convocar reuniões e pedir que os participantes não levem celulares à sala, receio de estar sendo gravado nas reuniões que acontecem na Fecomércio, “oculta e esconde documentos” e “varreduras em seu local de trabalho”.
Declare guerra
O episódio marca “uma inominável violência contra a advocacia e um atentado contra o Estado Democrático de Direito”, comenta o advogado José Roberto Batochio, ex-presidente do Conselho Federal da OAB e ex-deputado federal. “Precisamos declarar guerra aos agressores do Estado Democrático de Direito. As conversas entre cliente e advogado são absolutamente resguardadas por sigilo, por regra constitucional.”
Batochio afirma que o MPF sequer poderia tecer considerações sobre o assunto. Os investigadores pedem que Valim esclareça a natureza de seu contrato e se os serviços foram “fictícios”. “Quem tem competência para saber da qualidade ou da quantidade de serviços prestados por advogados é a OAB. Se começarmos a desconfiar das petições aforadas em juízo, também podemos acreditar que os inquéritos são falsos, não podemos? Isso não se justifica!”
“É um asburdo”, comenta o presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Fábio Tofic Simantob. “É evidente que qualquer pessoa que conversa com o seu advogado tem interesse em preservar o máximo possível de sigilo daquela conversa. O telefonema pode estar sendo grampeado, e não só pela polícia, pode ser um concorrente, um adversário, um corréu. Não existem só grampos legais”, diz o criminalista.
De fato, Orlando Diniz está envolvido numa disputa política milionária pelo controle das entidades que preside com o presidente da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Antônio Oliveira Santos. Uma das conversas grampeadas, inclusive, fala sobre a contratação do escritório Teixeira e Martins Advogados para reverter uma decisão que afastou Diniz da Presidência da Fecomércio, do Sesc e do Senac.
O escritório, que também defende o ex-presidente Lula na operação Lava Jato, disse que vai tomar as medidas cabíveis contra a divulgação de detalhes desse contrato. Por causa de seu cliente famoso, a banca já foi alvo de grampo generalizado, depois de uma manobra do MPF do Paraná autorizada pelo juiz Sergio Moro, responsável pela Lava Jato. Depois ele teve de se explicar ao Supremo Tribunal Federal, mas o caso não teve maiores consequências.
Tofic acredita que os pedidos do MPF e a decisão judicial no caso de Orlando Diniz são desproporcionais. “Além do absurdo de se criar uma suspeita em cima do advogado por conversas com seu cliente, há o segundo absurdo de não tentar resolver essas suspeitas por formas eficientes que tornam prescindíveis a busca e apreensão — embora o advogado não seja obrigado a depor sobre o serviço que está prestando”, protesta.
“A partir do momento em que se percebe que determinada conversa é do investigado com seu advogado e não se detecta nenhum indício de crime pelo profissional, o grampo deve ser descartado”, diz o presidente do IDDD. “É simplesmente uma conversa confidencial.”
Em nota, o Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), disse que a postura do MPF é inaceitável e autoritária. “Mesmo no período da ditadura militar, era impensável que um agente de polícia invadisse um escritório de advocacia para violar os arquivos. Hoje, juízes autorizam a violação da comunicação pessoal entre o advogado e o cliente e determinam busca e apreensão nos escritórios de advocacia.”