Às vezes a realidade consegue ser mais dura e fantástica que o mundo de fantasias e invenções dos roteiristas de cinema. O Brasil viveu praticamente uma distopia no período Bolsonaro.
O filme “Gritos do Sul” vem com uma destinação: escancarar de uma vez por todas uma faceta dos preconceitos estruturais de uma pequena parcela dessa uma população descontente e rancorosa com a derrota do “mito”.
O curta metragem de suspense tem como contexto a pandemia e a ascensão do fascismo na região Sul do Brasil e causou revolta e retaliações múltiplas dos seguidores do ex-presidente negacionista em Santa Catarina.
Segue a entrevista concedida pela professora, diretora e roteirista Fahya Kury Cassins.
DCM: Seu filme foi escrito e rodado em meio à pandemia de COVID 19. Você considera “Gritos do Sul” um “sobrevivente”? Conte um pouco desse período.
Fahya Kury Cassins: Não só um sobrevivente, mas uma resistência. Lembro num curso quando contei que havia enviado o projeto de um curta antifascista para o edital municipal e me perguntaram se eu não tinha receio de censura. Eu disse, em 2021, que veríamos se havia censura instalada ou não. Não teve censura. Naquela época ainda não estávamos sob ataques ou a cultura que estava sendo produzida já tinha medo e não tocava nesses assuntos.
Escrever o roteiro do “Gritos do Sul” foi uma catarse, depois eu entendi. Eu era professora no início da pandemia e vivi o pesadelo que foram as aulas online, sofri perseguições que foram uma continuação das perseguições que eu e colegas sofríamos desde o ano eleitoral de 2018. Tudo só foi piorando. Além disso, cada fala, cada detalhe do “Gritos do Sul” é inspirado em fatos da realidade – tanto da relação do casal quanto de todo contexto político e social, pandêmico também.
A pandemia só veio para escancarar a tragédia que o Brasil vivia, ter presidente desdenhando da vida dos brasileiros foi uma consequência das escolhas que parte da sociedade fez. As perseguições, os ataques, o negacionismo, tudo era consequência, vinha no grande “pacote” de naturalizar atitudes fascistas, racistas e de violência.
Viver em Joinville, em Santa Catarina, onde temos uma boa parcela da sociedade que aderiu ao discurso violento, que ataca e discrimina quem não lê na cartilha das fake news deles, durante o governo Bolsonaro e a pandemia foi um trauma. Quando começamos a produzir o “Gritos do Sul” eu entendi que ele era parte da cura, do processo de curar cada um de nós, e assim tem sido, com cada pessoa que assiste ao curta e fala comigo. Ouvi muitos dizerem “esse grito também é meu”.
Como professora e cineasta, onde o preconceito e a intolerância esbarraram na sua trajetória acadêmica e na produção de “Gritos Do Sul”?
Sempre. Professores são o alvo há anos. Nós vivemos apreensivos. Mas aí entra a questão de gênero, mulher é quem cuida, então ser professora é uma profissão para nós. Mas ser diretora, ser produtora executiva, mandar numa equipe, aí não pode. Essa questão da feminização das profissões, da discriminação de gênero, é muito real no dia a dia. Eu nem me via como Diretora, dentro do cinema, porque desde a graduação isso parecia inalcançável perto dos colegas homens, dos professores – porque é aí que começa a discriminação, nos espaços de formação. Mas, em algum momento, eu percebi que não podia só ficar onde a sociedade mandava eu ficar, porque eu podia pertencer a outros espaços.
Foi o momento da reviravolta, eu começar a produzir, tomar pra mim funções de mando numa equipe. E não faltou assédio nem preconceito. Como professora, tive alguns episódios de alunos – homens – tentarem desmerecer e atacar o meu trabalho – tanto de docente quanto no cinema. Os colegas homens professores não passaram por essas agressões. Eu fui assediada em produções anteriores ao “Gritos do Sul”, por homens da equipe, e demorei até pra entender que eram formas de assédio. Porque no cinema, infelizmente, o assédio (de todo tipo) era muito aceito. E aqui na cidade eu fui a primeira a levantar essa bandeira, a dizer que assédio é crime, que não podemos tolerar.
No “Gritos do Sul” tivemos uma equipe incrível, primeiro por toparem fazer um curta antifascista, e porque éramos maioria de mulheres. Essa foi uma realização pessoal e profissional gigante, trazer cada vez mais mulheres para a produção de cinema é gratificante. Tenho certeza que se um homem tivesse feito o “Gritos do Sul” os ataques seriam diferentes (ou sequer teriam acontecido), porque esses homens que me atacaram têm como foco mulheres, é só ver os casos, mulheres no exercício da sua profissão como professoras, jornalistas, artistas.
O filme provoca uma dúvida: a semente do fascismo e eugenia vão nos assombrar por muito tempo? Vamos ter uma continuação, uma segunda parte?
Certeza. Que bom que você perguntou isso! A semente do fascismo já foi plantada. Eles estão entre nós. Eu ouvia um podcast com a pesquisadora Adriana Dias (que infelizmente já faleceu), esses dias, no qual ela falava que o fascismo brasileiro é uma bagunça, porque tem gente que, às vezes, nem entende tudo o que está fazendo naquele grupo, eles têm referências diversas, até de grupos internacionais contraditórios, mas uma coisa persiste: eles são violentos, racistas, machistas. Em outra reportagem o professor Klug, da UFSC, assinalava que as mulheres, para eles, são meras reprodutoras de novos arianos – e esse é o argumento do “Gritos do Sul”. A Maíra é minha heroína, porque enquanto mulher, mãe, dona de casa, professora e pesquisadora (ou seja, uma mulher como muitas de nós da realidade) ela está ali presente se desdobrando em várias e sendo mãe e esposa (de um homem bastante vulgar, no sentido de comum). E ela é a grande vítima do fascismo: mulher e profissional.
Eu faço essa relação com o que eu disse acima, sobre ser uma mulher artista e professora exercendo a minha profissão. Ficou evidente, quando os ataques vieram, que quem se incomodou com o filme foi porque se viu no espelho. O filme não xinga ninguém. Ele aborda a realidade racista e de discriminação na qual vivemos e essa realidade não vai mudar do dia pra noite, muito menos se não tocarmos no assunto.
Então, durante a produção várias pessoas falavam sobre uma continuação. Confesso que na época eu achava bobagem, ouvia e não dava muita atenção. Hoje já penso diferente. Quem sabe? O que será que aconteceu com a Maíra e com o filho dela? Quem sabe o que será daquele lugarejo e dos planos da dona Gertrudes e do seu Gerson no futuro próximo?
Quais as reações dos bolsonaristas ao seu filme?
Como disse o advogado que trabalhou conosco na equipe, a reação deles era esperada. Eles não são nosso público-alvo, não são as pessoas para quem queremos falar. Mas eles estão no poder. As tentativas de atacar o “Gritos do Sul” começaram em maio deste ano e continuam até hoje, com esses políticos buscando palco nas redes sociais, usando mentiras e fake news, sem nenhuma prova.
Mas o Brasil está cansado disso, eu acho, de político que quer só viralizar com pseudo-polêmicas e quer se eleger na onda (em 2018 isso funcionou, mas tem perdido força). Os ataques deles só fizeram o “Gritos do Sul” crescer, ganhar o mundo, ser ainda mais divulgado e realizar o que era a função dele: levar a arte e o pensamento crítico para as pessoas. No projeto eu dizia que queria levar o cinema produzido em Joinville para ser reconhecido no país e consegui.
Justamente, quando os ataques começaram – por mera coincidência, claro – o resultado da análise dos projetos do edital municipal de 2022 tinha acabado de ser divulgado. Eu tive dois projetos aprovados, meu pai, que é sócio na produtora, teve um, em primeiro lugar, na categoria Audiovisual. Então, mera coincidência ou não há tentativas claras de buscar impedir que eu acesse novos recursos, a perseguição tem esse foco também, é evidente. Querem me desmoralizar enquanto profissional e pessoa.
Na esteira das denúncias, a Secretaria de Cultura lançou uma nota na qual dizia que tomaria “providências” para que isso (projetos como o “Gritos do Sul”) não voltasse a ocorrer. Na Câmara de Vereadores, a bancada do prefeito, todos do partido Novo, protocolou projeto de lei que altera a Lei do SIMDEC (nosso sistema de fomento) para censurar projetos com conteúdos políticos, religiosos, etc. e outro vereador, um dos que me atacou, propõe, num outro projeto, duras sanções para quem tiver irregularidades na execução de projetos culturais. Curiosamente, havia uma tentativa de passar esses projetos a toque de caixa, enquanto quiseram expor as prestações de conta do projeto do “Gritos do Sul”. Pra mim a relação é muito clara. A perseguição se dá de várias formas, não só de caráter ideológico, mas vingativo e coercitivo. O momento, em nível nacional, é muito bom. A volta do Ministério da Cultura, o retorno do fomento, da ANCINE, a retomada dos editais e investimento em cultura.
Sua origem sírio-libanesa me transportaram ao oriente médio. Você faria um filme de terror baseada nos conflitos na Faixa de Gaza e região?
Acredito que não. Meu avô era filho de mãe síria e pai libanês, que vieram na década de 1910 pro Brasil, fugidos da perseguição porque eram católicos. Eu já fui discriminada, em Joinville, algumas vezes pelas minhas origens – justamente por esse preconceito absurdo e desinformado que se tem sobre o Oriente Médio. Anos atrás eu escrevia pra um site local e volta e meia recebia ataques por ser mulher e pelo meu nome e sobrenome, por aqui é comum você ouvir “se acha ruim, vai embora” – pra ver como são incapazes de fazer autocrítica.
Agora, com toda a repercussão do “Gritos do Sul”, voltei a ser atacada pela minha origem sírio-libanesa (que para muito brasileiro, Oriente Médio é tudo a mesma coisa, não sabem nada dos contextos, religiosidades etc). Por isso, eu tenho muito respeito e considero que é preciso ter extremo cuidado na abordagem do tema. Estamos falando de pessoas iguais a nós e que se não entendemos os conflitos reais deles, melhor fechar a boca. A guerra em si é o maior terror que cinema nenhum pode alcançar.