Publicado originalmente na fanpage do autor no Facebook
POR AFRÂNIO SILVA JARDIM, professor associado de Direito Processual Penal da UERJ
O ato institucional n.5, de 13 de dezembro de 1968, deu “poderes imperiais” aos generais que assumiam a Presidência da República, sempre através de eleições indiretas.
Após tirar o presidente constitucional de nosso país, João Goulart, através de um golpe militar, o grupo que assumiu o poder político restou desgastado perante a opinião pública, bem como estava fragilizado em razão de disputas internas no âmbito das Forças Armadas. A reação da chamada sociedade civil à ditadura militar estava crescendo, mormente através do aguerrido movimento estudantil.
Em razão de vários outros percalços, alguns usados como meros pretextos, o general Costa e Silva, presidente eleito por um congresso mutilado e composto por apenas dois partidos políticos, criados pelo próprio governo autoritário, assinou e publicou um ato “supra constitucional”, através do qual assumia poderes ditatoriais e incontroláveis, fechando as casas legislativas, cassando mandatos populares, aposentando compulsoriamente ministros do Supremo Tribunal Federal e diversos outros atos de truculência, conforme se vê do chamado Ato Institucional n.5, de 13 de dezembro de 1968.
Gostaria de salientar aqui que esta norma ditatorial, imposta pela força à sociedade brasileira, afastou expressamente o Habeas Corpus nas hipóteses de alegação de prática de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular, (artigo 10).
Ademais, o artigo seguinte deste famigerado Ato Institucional, expressamente exclui de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos, (artigo 11).
Tudo isso durou dez anos, pois o AI 5 somente foi revogado em dezembro de 1978. Foram os chamados “anos de chumbo” …
Desta forma, levando-se em consideração que a ação de Habeas Corpus tem como objetivo principal evitar uma prisão ilegal ou desconstituir uma prisão ilegal, colocando em liberdade qualquer pessoa que fosse presa em desacordo com a Constituição ou as leis do país, ficou “legitimada” toda e qualquer prisão. Vale dizer, a prisão ilegal não poderia ser desfeita. O preso deveria ficar preso ainda que sua prisão tivesse sido consumada em desacordo com a nossa ordem jurídica. Na expressão popular, em termos de prisão, o AI 5 “liberou geral”.
Diante desta imensa lacuna jurídica em termos de direitos e garantias individuais, o Poder Público passou a “sequestrar” as pessoas que se opunham, de qualquer forma, às políticas do Estado ditatorial. Qualquer pessoa, em qualquer dia, hora, local e modo poderia ser presa, desde que se alegasse que ela estava sendo detida por motivos políticos.
Diante desta barbárie, estar preso já era uma regalia ou privilégio, pois muitos simplesmente desapareceram, como também os seus corpos. Muitos foram barbaramente torturados e morreram em razão destas torturas. Vejam os vídeos sobre estes temas publicados no Youtube.
Sobre tudo isto, recomendo a leitura do livro “Dos filhos deste solo. Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado”, de autoria de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, 2ª.edição. Boitempo.
Vivi esta insólita época e bem sei o dano que é viver em constante insegurança, viver sem as garantias do Estado de Direito. Nesta situação, a própria insegurança e o temor de ser sequestrado pelos agentes do Poder Público já são danos quase que irreparáveis…
O dramático é que, passado meio século, ainda não estamos livres desta “assombração”, ainda não estamos livres desta terrível possibilidade.
Com a recente eleição presidencial de um ex-capitão truculento e levando em linha de conta algumas manifestações da extrema direita e de seguimentos sociais, confessadamente fascistas, estamos novamente sendo submetidos a este temor, o risco “ronda a nossa porta”.
Aliás, mesmo durante estes 50 anos, por várias vezes, estas ameaças de intervenção militar quase se concretizaram.
Lamentavelmente, eu que passei por tudo isto, mormente na minha juventude, estou agora, depois de velho, sendo exposto a estes mesmos riscos, a estes mesmos temores.
O que nos consola é saber que não existe governo autoritário que dure para sempre e que os melhores valores de nossa civilização acabam sempre ressurgindo. Sempre haverá “Comissões da Verdade” e nem sempre as leis de anistia irão deixar impunes os torturadores (eles são bestas humanas).
Finalizo, rendendo minhas sinceras homenagens a todos e todas que sucumbiram na luta contra as ditaduras em nosso país, bom como a seus familiares. Tenho consciência de que só posso estar escrevendo e publicando este breve e singelo texto porque estas pessoas se martirizaram em prol de uma sociedade menos injusta e verdadeiramente democrática, principalmente no aspecto econômico e social.
Nesta perspectiva, a luta nunca será uma derrota, pois sempre restará caída, neste árduo caminho, uma semente de humanidade que, no futuro, irá novamente germinar. A história não para e os conservadores e reacionários não passarão !!!
Abaixo, transcrevo integralmente este Ato da ditadura militar que tanto mal fez à minha geração, com efeitos danosos que ainda se prolongam. Passados cinquenta anos, NADA A COMEMORAR !!!
Afranio Silva Jardim, professor associado de Direito Processual Penal da Uerj.
ATO INSTITUCIONAL Nº 5, DE 13 DE DEZEMBRO DE 1968.
Art. 1º – São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional.
Art. 2º – O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.
§ 1º – Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios.
§ 2º – Durante o período de recesso, os Senadores, os Deputados federais, estaduais e os Vereadores só perceberão a parte fixa de seus subsídios.
§ 3º – Em caso de recesso da Câmara Municipal, a fiscalização financeira e orçamentária dos Municípios que não possuam Tribunal de Contas, será exercida pelo do respectivo Estado, estendendo sua ação às funções de auditoria, julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos.
Art. 3º – O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição.
Parágrafo único – Os interventores nos Estados e Municípios serão nomeados pelo Presidente da República e exercerão todas as funções e atribuições que caibam, respectivamente, aos Governadores ou Prefeitos, e gozarão das prerrogativas, vencimentos e vantagens fixados em lei.
Art. 4º – No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.
Parágrafo único – Aos membros dos Legislativos federal, estaduais e municipais, que tiverem seus mandatos cassados, não serão dados substitutos, determinando-se o quorum parlamentar em função dos lugares efetivamente preenchidos.
Art. 5º – A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em: (Vide Ato Institucional nº 6, de 1969)
I – cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;
II – suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;
III – proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;
IV – aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança:
a) liberdade vigiada;
b) proibição de freqüentar determinados lugares;
c) domicílio determinado,
§ 1º – O ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados. (Vide Ato Institucional nº 6, de 1969)
§ 2º – As medidas de segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas pelo Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu ato pelo Poder Judiciário. (Vide Ato Institucional nº 6, de 1969)
Art. 6º – Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.
§ 1º – O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.
§ 2º – O disposto neste artigo e seu § 1º aplica-se, também, nos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.
Art. 7º – O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo.
Art. 8º – O Presidente da República poderá, após investigação, decretar o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido, ilicitamente, no exercício de cargo ou função pública, inclusive de autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, sem prejuízo das sanções penais cabíveis. (Regulamento)
Parágrafo único – Provada a legitimidade da aquisição dos bens, far-se-á sua restituição.
Art. 9º – O Presidente da República poderá baixar Atos Complementares para a execução deste Ato Institucional, bem como adotar, se necessário à defesa da Revolução, as medidas previstas nas alíneas d e e do § 2º do art. 152 da Constituição.
Art. 10 – Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.
Art. 11 – Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.
Art. 12 – O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário.
Brasília, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República.
A. COSTA E SILVA
Luís Antônio da Gama e Silva
Augusto Hamann Rademaker Grünewald
Aurélio de Lyra Tavares
José de Magalhães Pinto
Antônio Delfim Netto
Mário David Andreazza
Ivo Arzua Pereira
Tarso Dutra
Jarbas G. Passarinho
Márcio de Souza e Mello
Leonel Miranda
José Costa Cavalcanti
Edmundo de Macedo Soares
Hélio Beltrão
Afonso A. Lima
Carlos F. de Simas