Harvard, os procuradores brasileiros e a linha que separa o estudo acadêmico de um processo de cooptação

Atualizado em 25 de março de 2019 às 17:06
Dallagnol e Moro

A Universidade de Harvard é a mais antiga dos Estados Unidos e abrigou em seus bancos oito presidentes daquele país e 150 ganhadores do Prêmios Nobel.

Para os brasileiros, nos últimos anos, Harvard também tem se destacado por abrigar membros do Poder Judiciário e do Ministério Público nacionais em cursos na área jurídica.

Deltan Dallagnol, o coordenador da Lava Jato, se formou num desses cursos, assim como Sergio Moro. Luís Roberto Barroso, logo depois que entrou no STF, estudou lá, no mês de recesso.

E voltou muito diferente, segundo alguns que o conhecem: era o que, em direito, se chama de um operador garantista e passou a ser um juiz punitivista.

Desta vez, Harvard empresta o seu nome para atividades exclusivas para promotores e procuradores.

Nos dias 18 e 19 de abril, professores da instituição realizarão o seminário de altos estudos “Colaboração Premiada e Práticas Anti-Corrupção: Estratégias Judiciais em Persecução Criminal”.

Com trinta vagas, não será cobrada nenhuma taxa de inscrição dos interessados.

Segundo o material de divulgação, o evento tem o apoio da Harvard Kennedy School Mediation Caucus e da Harvard Kennedy School Anti-corruption.

O primeiro evento será uma palestra do professor  Mattew Stephenson. Ele falará sobre a luta contra a corrupção.

Em seguida, haverá uma aula sobre plea bargaining, uma figura presente no direito dos Estados Unidos que Sergio Moro pretende implantar no Brasil.

Plea bargaining é um instituto que permite uma espécie de contrato entre réus e procuradores, para a retirada de acusações ou redução de pena em troca da admissão de crimes.

Para juristas brasileiros, isso representará o fim do direito romano, como conhecemos, em que os acusadores devem provar a culpa do réu, e abrirá caminho para a perseguição de adversários políticos, o lawfare.

Para esses críticos, plea barganining transforma o processo criminal em um instrumento para atingir determinados alvos.

Em uma dos palestras, o professor Adiaan Lanni, falará sobre o plea bargaining nos Estados Unidos, com atenção para as inovações necessárias.

Etiene Martins é apresentado como palestrante sobre a perspectiva do juiz sobre o plea barganining.

Etiene Martins é juiz federal, com curso de mestrado em Harvard.

No dia 19, falarão Monica Gianonne sobre negociação integrada.

O professor Jeeyang Baum abordará em sua palestra tópicos sobre a descoberta e o combate à corrupção.

Todos os participantes terão direito a certificado.

O jurista Afrânio Silva Jardim, professor de processo penal da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, criticou a iniciativa.

“Vejam como os Estados Unidos, habilmente, cooptam os membros das instituições que atuam em nosso sistema de justiça criminal”, afirmou.

Disse ainda:

“Não é de hoje que venho advertindo sobre esta estratégia dos norte-americanos no sentido de mitigar o princípio da legalidade no processo penal, aumentando a discricionariedade em nosso ordenamento jurídico. Isto é muito útil para o lawfare que está se disseminando em toda a América Latina”.

Para ele, o plea bargaining substitui o devido processo legal por um negócio jurídico processual, sem qualquer mecanismo efetivo de controle. “Vale dizer, execução penal por título extrajudicial”, comparou.

Por fim, alertou:

“A nossa comunidade jurídica não pode cair neste engodo. Este processo penal negocial viola o nosso Estado de Direito e agride a nossa já combalida democracia. Processo penal não pode ser usado como instrumento de perseguição, mormente perseguição política.”

Conversei pelo telefone e enviei algumas perguntas para um dos organizadores do curso em Harvard, o promotor Leonardo Cézar, do Ministério Público do Espírito Santo, responsável no Brasil por receber as inscrições.

Ele disse que, num primeiro, também achou estranho o interesse de Harvard pela formação de promotores, procuradores e de juízes (recentemente, houve um curso parecido para magistrados brasileiros da área criminal).

“Pensei numa nova forma de colonização”, disse. “Mas depois acabei concluindo que se tratava de uma iniciativa para troca de experiências.

“Por que Harvard teria interesse nos assuntos da Justiça brasileira?”, questionei. “Qual o risco de um evento como este servir como instrumento de cooptação de autoridades brasileiras?”

A resposta do promotor Leonardo Cézar:

“Não há risco algum de cooptação de autoridades brasileiras, uma vez que haverá troca de experiências sobre o fenômeno da justiça negociada e em relação ao combate à corrupção. Os brasileiros irão aprender com os erros e acertos do sistema norte-americanos e os americanos terão oportunidade de, na troca de experiência, aprenderem com os erros e acertos do sistema brasileiro”, disse.

Um dos co-patrocinadores do seminário será a associação de alunos brasileiros da Universidade de Harvard.

Promotores e procuradores que fizerem o curso ganharão um certificado de peso para seu currículo.

Mas é inegável que esse tipo de atividade atende ao interesse dos Estados Unidos de fazer amigos em áreas sensíveis de outros países.

Há algumas décadas, o Departamento de Estado criou um programa para financiar viagens e cursos a autoridades estrangeiras em seu território, sobretudo da área jurídica.

O curso oferecido aos procuradores e promotores neste momento casa cronologicamente com o movimento de Sergio Moro para introduzir mudanças na legislação.

Nesse sentido, nada mais eficiente do que equipar 30 promotores e procuradores com informações que sirvam para ajudar na divulgação da ideia e na construção de um consenso para facilitar as mudanças.

Atende ao interesse brasileiro?

Nunca é demais lembrar que Harvard, além de ter formado oito presidentes e 150 Prêmios Nobel, também formou 62 bilionários, a maioria dos Estados Unidos.

São bilionários como estes que ajudam na manutenção da universidade.