Por ameaçar sítio arqueológico, fábrica da Heineken em MG é embargada após multa de R$ 83 mil
Por Daniel Camargos
A ameaça de soterrar o complexo de grutas e cavernas onde foi encontrado o esqueleto mais antigo das Américas — o crânio de Luzia — levou o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) a paralisar as obras de uma fábrica da cervejaria Heineken em Pedro Leopoldo, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. O órgão do Ministério do Meio Ambiente também enviou ofício para o governo mineiro, que já havia concedido a licença prévia para a construção, e aplicou duas multas na empresa, que somam R$ 83 mil.
A construção da fábrica chegou a ser usada pelo governador Romeu Zema (Novo) como bandeira política. Quando anunciou o acordo com a cervejaria, o político postou nas redes sociais um vídeo exaltando a atração de um investimento de R$ 1,8 bilhão para o Estado. Um dos secretários de Zema destacou a “dinamicidade” do governo para conseguir convencer a Heineken a construir a fábrica em Pedro Leopoldo, distante 40 quilômetros de Belo Horizonte.
Os fiscais do ICMBio, contudo, entenderam que a “dinamicidade” apregoada pelo governo implicou em estudos de impacto ambiental insuficientes. Além de colocar água no chope do empreendimento, que previa a criação de 350 empregos diretos.
“Os impactos [à Área de Proteção Ambiental Carste Lagoa Santa, vizinho à construção da fábrica] são desconhecidos e imprevisíveis”, afirmam os fiscais do ICMBio, pois os estudos apresentados pela Heineken e aprovados pelo governo mineiro são falhos, segundo eles.
A caverna Lapa Vermelha IV, onde foi encontrado o crânio de Luzia, pode ser “fatalmente afetada” com a futura fábrica, continuam os fiscais. O órgão classifica a concessão da licença ambiental do governo mineiro como “uma grave falha”.
O ICMBio afirma que não foram apresentados estudos que possibilitem saber como a construção da fábrica afetará a dinâmica da drenagem da água, uma das fontes de captação para produzir a cerveja é o subsolo, com um volume de 310m³ por hora, o que seria suficiente para abastecer uma cidade de 37 mil habitantes. “A retirada de água do subsolo poderá implicar em consequências danosas ao meio ambiente”, afirma a nota do ICMBio.
Quem também teme pela construção da fábrica é o arqueólogo, biólogo e antropólogo Walter Neves, conhecido como “pai de Luzia”. “Qualquer coisa que mexa na dinâmica de água subterrânea do carste [relevo caracterizado pela corrosão das rochas] é um desastre”, afirma Neves, que é professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP.
Além de ter batizado Luzia — uma homenagem à Lucy, o fóssil de Australopithecus afarensis de 3,5 milhões de anos achado na Etiópia em 1974 –, Neves é o principal nome da teoria que defende que as Américas foram colonizadas por duas levas de Homo Sapiens vindas da Ásia.
Sendo que a primeira onda migratória ocorreu há uns 14 mil anos e foi composta por indivíduos parecidos com Luzia, semelhante aos atuais australianos e africanos, que não deixaram descendentes, já o segundo grupo veio depois, há 12 mil anos, com o tipo físico dos asiáticos, de quem os indígenas descendem.
O local em que foi encontrado o esqueleto que serve como chave para explicar a história das Américas pode ser soterrado, segundo o ICMBio, o órgão afirma que os consultores contratados pela Heineken para elaborarem os estudos estão “bastante equivocados com relação à caracterização deste impacto”.
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A Repórter Brasil pediu o posicionamento da Heineken em duas oportunidades. Na primeira resposta, enviada em 10 de setembro, a empresa disse que forneceu todos os documentos, dados e estudos técnicos para obter a licença ambiental. Além de estar ciente de que a licença seguia o processo normal.
Na segunda resposta, enviada em 15 de setembro após a obra da fábrica ser embargada e a empresa receber duas multas do ICMBio, a empresa disse que suspendeu a atividade de terraplanagem após a ação dos fiscais. Disse também que está à disposição dos órgãos envolvidos. Destacou ainda que “reforça seu profundo compromisso com a preservação do meio ambiente e com a legislação ambiental em vigor”.
A Semad também foi procurada duas vezes pela reportagem e mudou o tom da resposta após a ação dos fiscais do ICMBio, o órgão ambiental do governo mineiro disse que soube das considerações do ICMBio em 14 de setembro e que está analisando tecnicamente: “Caso sejam confirmadas as irregularidades apontadas pelo Instituto, a Semad deverá encaminhar ao ICMbio os esclarecimentos necessários para a elucidação dos fatos”.
Nos primeiros questionamentos da Repórter Brasil para o governo mineiro, em 8 de setembro, a Semad explicou que o processo de licenciamento da fábrica da Heineken foi considerado prioritário pela relevância de aspectos econômicos e sociais e que a licença prévia foi concedida em 24 de agosto após deliberação da da Câmara de Atividades Industriais (CMI) do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam).
A Semad afirmou também que enviou ofício para o ICMBio e que não recebeu nenhum retorno. Contudo, o ICMBio já havia enviado ofício para a Semad em 9 de agosto; sendo que o sistema de rastreamento dos Correios acusou o recebimento em 12 de agosto.
Ao ser questionada se cogitava reconsiderar as licenças ao ter conhecimento sobre a possibilidade da construção da fábrica alterar a dinâmica do complexo de cavernas Lapa Vermelha, a Semad disse que “caso haja impacto negativo confirmado, em contraponto aos estudos apresentados, existe sim a possibilidade de reconsideração e adoção de medidas impeditivas cabíveis”.
Questionado se houve pressão política para que o processo fosse ágil e sem os estudados necessários, conforme apontou o ICMBio, a Semad disse que: “Transcorreu dentro de um prazo normal para processos de seu porte e características, sendo observadas rigorosamente a técnica e as normas vigentes e aplicáveis, não tendo nenhuma pressão política para sua conclusão”. A construção embargada seria a décima-sexta fábrica da Heineken no Brasil.
A relevância histórica das cavernas
A relevância da área de proteção para a história da humanidade é reconhecida desde a primeira metade do século XIX, quando o dinamarquês Peter Lund explorou centenas de grutas em busca dos vestígios dos imensos mamíferos, como tigres-dente-de-sabre e preguiças gigantes. Lund também encontrou fósseis de povos remotos que ocuparam a região.
Em 1970, foi a arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire que encontrou na gruta Lapa Vermelha IV restos de esqueleto; incluindo um crânio, que vinte anos depois receberia o nome de Luzia. Com idade estimada em torno de 13 mil anos, Luzia modificou o entendimento sobre a origem do povoamento das Américas.
“A Luzia é o esqueleto mais antigo das Américas. Por si só é um ícone da pré-história”, afirma o arqueólogo Walter Neves. Além disso, o professor da USP entende que ainda há muito a ser escavado nas cavernas da Lapa Vermelha. Ele considera improvável que ainda seja encontrado um esqueleto lá, mas não impossível. “É um dos sítios arqueológicos mais importantes das Américas”, define.
Em setembro de 2018, o crânio de Luzia foi atingido pelo incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. 80% dos fragmentos foram encontrados nos destroços. Agora, a ameaça ao sítio arqueológico é a cerveja.
(Texto originalmente publicado em REPÓRTER BRASIL)