“Chamar policial de herói é dizer que ele é descartável”, diz policial militar comunista

Atualizado em 26 de janeiro de 2022 às 10:47
A imagem do policial militar comunista
Vinicius Sousa. Foto. Arquivo Pessoal

Em 2007, Vinícius Sousa fez um caminho comum a muitos mineiros. Deixou Belo Horizonte para trabalhar e fixar residência no Espírito Santo. Ingressou na Polícia Militar em 2008, como soldado. Após prestar novo concurso, entrou para o Curso de Formação de Oficiais 2012.

A história de Sousa, como é chamado na polícia, seria como tantas outras, não fosse um detalhe ideológico. Sousa é comunista. Integrante do movimento Policiais Antifascismo, o capitão está respondendo a dois processos na corregedoria da corporação, devido a postagens nas redes sociais com opiniões sobre a segurança pública e críticas ao governo Bolsonaro.

“Esse processo é um equívoco, eu exerci no âmbito privado o direito de opinião, que inclui o direito de crítica e eu tenho sim crítica a várias políticas de governo, críticas ao sistema político”, explica Sousa, que ganhou o apoio da “Frente Cala Boca Já Morreu”, iniciativa pela defesa da liberdade de expressão encabeçada por Felipe Neto.

“Se puder, gostaria que citasse os advogados que estão na minha defesa”, disse Sousa durante uma entrevista por telefone. Na conversa, ele falou da vivência enquanto policial de esquerda, de como a mídia atrapalha a formação da consciência de classe entre os policiais e explicou no que consistem o ciclo completo de polícia e a carreira única, conceitos importantes defendidos pelos policiais antifascistas.

Atualmente lotado no 9º Batalhão, na cidade de Cachoeiro de Itapemirim, o capitão está sendo defendido pelos advogados Ana Luiza Ferreira, André Perecmanis, Átila Carvalho Ramos, Beto Vasconcelos, Fernanda Muniz, Júlia Palmeira, Juliana Vieira dos Santos e Paula Cristina Costa, pela Frente Cala Boca Já Morreu, além de ter o apoio do advogado e ativista dos direitos humanos André Moreira, do Espírito Santo.

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Veja a entrevista com o policial militar comunista

Você se identifica como policial de esquerda. Você teve esse posicionamento ou foi se tornando com o tempo

Sou um filho da classe trabalhadora. Meus pais são professores, meu pai obteve o ensino formal básico com muita dificuldade, eram pessoas de origem muito humilde, do interior, então sempre vi como a classe trabalhadora produz riqueza e quanto ela não é reconhecida. Desde muito novo tenho essa percepção, que ainda está formação. Então, me percebo como homem de esquerda desde que me entendo como cidadão.

Você percebe alguma identificação como classe trabalhadora entre seus companheiros de farda ou a polícia faz com que a pessoa não se veja mais como uma trabalhadora?

O nosso sistema político, chamado de democracia burguesa, é elaborado metodicamente de modo a afastar do trabalhador a consciência de classe. Existe uma luta de classes, na medida em que a classe dominante explora o trabalho da classe trabalhadora e não remunera essa classe na medida da riqueza que ela gera. Por isso existem mecanismos de controle, um deles é essa comunicação, esses aparelhos ideológicos todos a partir da mídia, da própria cultura, desvirtuada do que é a comunicação social, do que é a cultura do povo.

A classe dominante, a partir dessa democracia burguesa, afasta o cidadão da compreensão de que existe uma classe trabalhadora. Nas polícias isso opera na mesma lógica, porém com mais intensidade porque as polícias são aparelhos repressivos dos Estados. Os policiais militares são uma categoria de trabalhadores, mas o sistema nega isso, nega a todo tempo que o policial se veja como um trabalhador e se construa como um trabalhador.

Por “sistema”, você fala o quê?

Digo o sistema político e os beneficiários, que é a classe econômica que domina economicamente o Brasil, ligada ao rentismo internacional. O Brasil não tem uma burguesia nacional, o Brasil hoje está entregue ao imperialismo, que domina o nosso sistema de mídia e a ideologia que é colocada nesse sentido.

Você fala bastante da mídia. Uma parcela considerável da imprensa tradicional dá muito destaque ao lado repressor das polícias. Isso contribui para afastar o policial da consciência de classe?

Antes de tudo, a impressão de que a mídia está contra a polícia é equivocada, a mídia está contra o policial e contra os trabalhadores de modo geral. É importante perceber que quando tem uma ocorrência mal sucedida, a imprensa jamais aponta para o sistema. Jamais questionam se o policial está preparado, se ele tinha ferramentas, treinamento. A imprensa questiona diretamente o profissional, então o sistema tira o corpo fora e deixa a responsabilidade toda sobre o trabalhador. Funciona assim também no setor privado, tivemos um caso recente de racismo em um supermercado aqui do Espírito Santo, em que um indivíduo suspeito de furto foi encaminhado para um cubículo, uma situação totalmente ilegal.

Mas aqueles seguranças estavam agindo conforme um protocolo, não foi uma ação de improviso. Quem é questionado? O profissional, o trabalhador. A empresa é a primeira a dizer que o trabalhador estava fora do protocolo, que preconiza os direitos humanos e que o autor do abuso é funcionário terceirizado. Faz um discurso bonito e quem responde é sempre o trabalhador. O policial está sozinho nos bancos dos réus, o segurança está sozinho nos bancos dos réus. Por isso, esse debate do “guerreiro”, do “herói” é muito importante, porque o policial é levado para o lado errado da luta de classes, no polo oposto ao dos demais trabalhadores e é largado sozinho lá. Porque o sistema político, o sistema econômico, ninguém vai sentar com ele no banco dos réus, nem a própria instituição vai sentar com ele. No banco dos réus só cabe o trabalhador.

Esse discurso de chamar o policial de herói acaba desumanizando o profissional?

Sem dúvida. O sistema tenta construir o policial como um guerreiro, como um herói e o herói não tem carga horária definida, não precisa de salário, não precisa de condições de trabalho, nada disso. O herói não se organiza para reivindicar os direitos. Essa condição de herói, de guerreiro é péssima para o policial e até mesmo para a população. É uma forma de dizer que o policial na verdade é descartável, porque ele pode se comportar como herói, se expor a riscos desnecessários. O discurso do herói é um convite ao amadorismo, à total falta de valorização e constrange o profissional quando não tem condições de agir, porque tem alguém olhando e pensando “ele é um herói, ele vai resolver”.

Então o policial acaba agindo em uma situação em que tecnicamente ele não iria e se arrisca. Arrisca mais do que a própria vida, arrisca a vida de quem estiver envolvido ali. Na boa intenção ele pode piorar as coisas. Não somos heróis, somos trabalhadores, nós precisamos de condições de trabalho, precisamos das transformações no sistema de polícia e submeter isso a um sistema que seja sério. O nosso sistema político não fará essa transformação, o nosso sistema político vai rir do profissional que levar essa pauta, como ri de todos os trabalhadores. Precisa de uma transformação na estrutura e no sistema político no Brasil que inclua as instituições e entre elas as polícias. E o heroísmo está inserido nisso, para retardar as transformações dentro da polícia. O médico, o enfermeiro, também têm essa pecha de herói. Muita gente está caindo nesse golpe de heroísmo, inclusive na saúde.

Quais problemas do dia a dia que são demandas da classe policial mas raramente ou nunca são citados pelos políticos de direita que dizem defender a polícia?

Entre as pautas dos policiais militares estão o seu reconhecimento como trabalhador, o ciclo completo de polícia, que posso explicar aqui e seria positivo para o povo, a carreira única, que é direito de qualquer trabalhador. Tem também a desmilitarização, porque é uma afronta ao profissional de segurança pública ser militarizado, porque a militarização é incompatível com a atividade policial. Outra coisa é a questão da guerra às drogas, porque esse profissional está sendo colocado numa guerra que é também um artifício político contra os pobres, porque a solução para a questão das drogas está na saúde pública.

Então esse policial quando chega, ele representa o Estado atrasado, o Estado que criou um problema, refletido naquela miséria, que não prestou o socorro com a equipe de saúde ou de assistência social, não remediou o próprio mal e mandou um policial dizendo “resolva”. Então o sistema brasileiro diz “você é nosso herói, você é nosso guerreiro, você é capaz, vá e vença”, e ele vai. Não resolve porque não está ao alcance dele. Ali não se trata de resolver e sim de encobrir um problema social usando um “guerreiro”. Esse “guerreiro” depois responde sozinho no banco dos réus, por qualquer equívoco que ele vier a cometer. O Estado não vai segurar, vai deixar com ele.

Como funciona a carreira única, que você e outros policiais antifascistas defendem?

Essa transformação passa pela desmilitarização e pelo ciclo completo. A figura do delegado de polícia só existe no Brasil, o inquérito policial só existe no Brasil, é um modelo europeu que não existe mais e aqui não foi modernizado. Ele parte do pressuposto de que é preciso ter um delegado, ou seja, alguém capaz de fazer um relato no papel, coisa que os outros policiais não teriam capacidade. Estamos falando de uma realidade no Brasil de um século e meio atrás. Não é a realidade de hoje. É um sistema que ignora a capacidade do nosso policial civil de cuidar de qualquer processo policial.

Assim como a figura do inquérito é desnecessária. O Brasil é a exceção da exceção por existir o inquérito aqui. E na Polícia Militar há uma casta de oficiais e uma casta de praças, baseadas no padrão das forças armadas para evitar empatia entre um oficial e a praça, porque numa lógica de guerra pode ser necessário lançar a tropa em combate mortal e se o oficial tiver uma proximidade muito grande, for oriundo daquela mesma praça, ele pode deixar de agir conforme a ciência militar e agir com o coração. É uma lógica que não se aplica às polícias. Na polícia, o profissional adquire as competências à medida que conhece o serviço, encontra outros conhecimentos, outras competências. Por isso deveria ter uma carreira única, onde quem chefia o policial conhece também a base.

É desnecessário ter dezessete degraus hierárquicos. A Polícia Rodoviária Federal é a polícia mais bem organizada do país e tem três degraus hierárquicos. É possível pensar numa carreira em que o policial ingresse, passe por formações, avaliações e tenha a garantia de chegar ao último nível funcional se cumprir com os requisitos. Nem todos nós seremos comandantes-gerais ou coronéis, isso depende de escolhas que serão feitas, da existência de vagas. O que é preciso é uma carreira única, em que o profissional progrida com o tempo e conforme a demonstração de preparo e competência. A lógica de castas é uma afronta a qualquer plano de carreira.

Como funciona o ciclo completo de polícia? Seria mais eficiente na prevenção e combate à criminalidade?

Por incrível que pareça, é mais fácil explicar o ciclo completo, que funciona no mundo todo, do que o nosso sistema, no ciclo de polícia completo, aquele policial que atende a ocorrência, um crime que for na rua, faz um boletim de ocorrência e encaminha para um setor administrativo, que fará a leitura e verá a sugestão do policial. Por exemplo, o policial fala que não conseguiu localizar o suspeito, mas que há uma câmera nas imediações. Então o policial solicita diligências complementares.

No dia seguinte vai uma outra equipe, possivelmente uma equipe específica para isso, mas da mesma polícia. Como o policial que atendeu a ocorrência ouviu as testemunhas no local, viu todas as provas, arrolou a testemunha no local, ouviu as versões e eventualmente prendeu o autor em flagrante, está pronta a ocorrência. É dispensável qualquer outra diligência posterior. A ocorrência vai ser encaminhada ao Ministério Público e se for o caso, o processo se inicia no dia seguinte.

E no Brasil?

No Brasil não. A ocorrência, independente se está resolvida ou não, se é simples ou complexa, vai para a Polícia Civil. A Polícia Civil não pode simplesmente iniciar a investigação, ela tem obrigações jurídicas. É um verdadeiro processo antes do processo. Tem que autuar aquilo tudo, dar vários carimbos, ver os documentos necessários, ver se está tudo assinado e daí chamar todo mundo de novo para prestar depoimento perante uma outra polícia.

Aquela testemunha que já foi chamada pelo policial militar na rua vai ser chamada de novo pela Polícia Civil e daí a mais um tempo vai ser chamado de novo no processo penal, então é um processo repetido, há muita repetição, muito retrabalho, e isso o mais grave de tudo, além de gerar burocracia e demora, tira esse policial civil da investigação e o coloca cuidando de burocracia, dentro dos cartórios das polícias civis.

O policial, se vir uma necessidade de diligência, não pode fazer, ele precisa aguardar o delegado fazer uma deliberação. É uma polícia que cria as próprias barreiras. Não é culpa do delegado ou do investigador, ou culpa do oficial ou da praça. É o sistema que cria distinções e afastamentos desnecessários e diz; “só um soldado faz isso, só o oficial faz aquilo, só um delegado faz aquilo, só um escrivão faz aquela outra coisa, e cria um sistema que é pouco dinâmico, no Brasil, a taxa de apuração de homicídios é baixíssima, porque um furto vai gerar inquérito, assim como um homicídio vai gerar um inquérito. Assim, um delegado tem que se dedicar a todos com profissionalismo e não consegue se dedicar àquilo que for prioridade.

No ciclo completo não tem inquérito?

Tem um boletim de ocorrência e posteriormente são feitas diligências complementares a esse mesmo boletim. Finalizando o boletim, é encaminhado ao Ministério Público e pronto.

Vamos pegar um exemplo, um homicídio na rua. Chega a Polícia Militar ao local e percebe que tem câmeras em um comércio, mas quem solicita as imagens é a Polícia Civil, correto?

Quem vai pedir é o delegado de Polícia Civil, formalmente. Mas no nosso amadorismo, no jeitinho brasileiro, o policial pode pedir à pessoa. Depois isso pode até ser questionado em juízo. O advogado pode, dentro desse jeitinho todo, dizer que tem coisa errada, que não foi seguido o rito previsto na lei. Por isso que no Brasil só se prende pobre. Quem tem recursos financeiros consegue, com advogados, fazer uma defesa e encontrar brechas na própria lei.

Então esse ciclo que funciona no Brasil, com duas polícias atendendo a uma mesma ocorrência, com mais gente envolvida, demanda mais tempo para investigação?

Muito mais tempo, sem sombra de dúvidas. A Polícia Civil tem poucas equipes que conseguem atuar nos casos. Porque a maior parte do efetivo está ocupada com os ritos burocráticos do inquérito. E esse profissional tem prazos para cumprir, para enviar esses inquéritos à Justiça. Ele não pode dizer “deixa eu passar uma tarde investigando aquele caso, duas horas naquele local e naquela ocorrência”. Ele tem prazos a cumprir e uma pilha de inquéritos na mesa dele que não deixam a ele investigar, que deveria ser essa a função dele. Ele primeiro faz aquilo que a lei obriga. Claro, como todo trabalhador, ele cumpre ordens e fica ali alimentando uma burocracia. É um profissional que se desdobra em duas ou três funções e não dá conta sozinho de resolver o problema do sistema de polícia que nós temos.

O excesso de burocracia induz a erros que levam pessoas inocentes ao sistema prisional?

Sim. Favorece os equívocos, favorece o amadorismo. Porque a burocracia é tanta que o profissional a fim de assegurar um bom trabalho. Muitas vezes precisa apelar ao amadorismo, ao jeitinho, por não ter os recursos adequados no local e sem poder deixar de atender aquela vítima, aquela família. As marcas mais graves da segurança pública no Brasil são a ineficiência e a injustiça. O sistema é inimigo diário do policial e da vítima.

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