Há 17 anos, Olavo de Carvalho criou um site chamado Mídia Sem Máscara e investiu tanto em podcast quanto em vídeos YouTube. Antes ele era colunista na velha mídia e conseguiu, com sua presença na internet, além do conhecido Curso Online de Filosofia (COF), atrair uma legião de seguidores e canais alinhados ideologicamente à extrema direita. Foi assim que ele apoiou a eleição e hoje dá suporte ao governo de Jair Bolsonaro.
Em mais de uma década na rede, Olavo gerou canais como o de Nando Moura, Bernardo Küster e outros que passaram a defender Bolsonaro e foram endossados pelo presidente como “excelentes opções” de informação.
A onda olavista no YouTube, no entanto, encontrou barreiras não só entre sites progressistas e de esquerda. Dentro da própria plataforma, cientistas e historiadores passaram a criticá-lo, bem como suas declarações que caíam em teoria da conspiração.
Um dos primeiros registros conhecidos de contestação científica a Olavo de Carvalho foi do Canal do Pirula em 3 de junho de 2012. Pirula é o apelido de Paulo Miranda Nascimento, que é paleontólogo, zoólogo, palestrante e divulgador científico brasileiro. Ele lançou um livro em co-autoria com o jornalista Reinaldo José Lopes neste ano chamado “Darwin sem frescura”.
Naquela data, Pirula contestou o vídeo de Olavo sobre a “Pepsi que usa células de fetos abortados como adoçante”. O cientista explicou, misturando humor e informação qualificada, que não era nada disso. O que a Pepsi usou foi uma substância extraída de células, não os fetos.
Pirula tornou-se conhecido em uma comunidade no Orkut chamada “Olavo nos odeia”, que reuniu alguns dos novos YouTubers que hoje contestam a extrema direita. Um deles é Clayson Felizola, que criou seu canal em 2013, mas se tornou mais ativo na plataforma só quatro anos depois.
Jornalista e professor, amigo de Pirula e de outros YouTubers, como Felipe Neto, ele começou a bombar com críticas diretas ao vlogueiro Nando Moura, discípulo de Olavo. Denunciou os discursos de Moura, que atacava canais de grande alcance para alavancar a sua própria audiência, e também fez denúncias sobre os cursos de Olavo de Carvalho. Hoje ele tem 97 mil seguidores na plataforma e colabora com outros produtores de conteúdo.
“Quando criei o canal, eu usava ele apenas para arquivar trechos do meu trabalho como repórter e apresentador de TV. Acredito que a única forma de construir um discurso consistente e coerente é através da informação e conhecimento, mas ainda há uma demanda por ‘tretas’”, disse Clayson ao DCM. E ele completa, criticando a plataforma: “YouTube ainda não oferece a oportunidade de construirmos nosso conteúdo pessoal. O usuário não recebe as notificações e entra na sua timeline vídeos e que não são diretamente de seu interesse. Ainda tem muito a ser corrigido”.
Diferente de Clayson na abordagem, Henry Alfred Bugalho criou seu canal em 2006 e só começou a postar em 2015. A ideia inicial era ensinar escritores em início de carreira e debater assuntos literários. Antes da eleição de Bolsonaro, o YouTuber passou a debater política, declarou-se contra o candidato de extrema direita e chegou em 230 mil inscritos criticando o presidente e seus seguidores. Os vídeos de Henry buscam o debate com argumentos fundados na lógica e com indicação bibliográfica. Uma das maiores críticas que ele fez foi ao “nazismo de esquerda”, conceito mentiroso propagado por Nando Moura.
Henry disse ao DCM como gostaria que fossem seus vídeos: “se eu pudesse optar, trabalharia apenas com análises mais sofisticadas a partir de reflexões e referências acadêmicas, mas, pelo próprio caráter imediatista da internet, você acaba sendo empurrado para questões populares e polêmicas. No entanto, mesmo nestes casos, eu sempre me esforço para trazer um embasamento teórico e um convite à reflexão”. E o YouTuber viu efeito disso na audiência: “percebo é que muito do meu público tem formação universitária. Portanto, é um público que está mais habituado à leitura e a certas referências que apresento. Posso exigir mais deles em concentração que vai para além da internet”.
Indo numa onda mais aprofundada, a socióloga e professora Sabrina Fernandes criou o canal À Esquerda em 2017 após criticar o premiê canadense Justin Trudeau no Facebook. Sabrina deu uma entrevista ao DCM TV em dezembro de 2018 explicando o nome que rebatizou seu trabalho. Baseada na teoria transformadora do marxismo, a YouTuber deu origem ao Tese Onze, um espaço que ela se dedica para criar conteúdo denso de quase meia hora de duração. “A ideia dos vídeos é que eles sejam vistos por pesquisadores, professores e alunos em sala de aula”, disse, em entrevista ao Diário. Ela tem mais de 130 mil inscritos.
Também professor, Carlito Neto, do canal O Historiador, começou em 2015 falando sobre história, explica conceitos e agora se dedica aos assuntos cotidianos. Ele critica, além de Nando Moura e Olavo, veículos da velha imprensa que favoreceram o atual presidente na eleição, como a Jovem Pan, e aborda as conexões internacionais do bolsonarismo. De Aracaju, em Sergipe, Carlito já ultrapassou 100 mil inscritos.
“Precisamos saber mesclar conhecimento técnico com a linguagem popular para tirar a ideia de que a academia é algo distante e que o saber só é acessível para alguns. Sinto falta da preocupação do YouTube com os conteúdos que são postados. Eles não têm um sistema que impeça a divulgação de fake news e isso torna a plataforma às vezes o habitat perfeito para malucos conspiradores”, explica o dono do canal O Historiador.
O problema do algoritmo do YouTube
Uma reportagem do Wall Street Journal em 2017 informou que o YouTuber gamer sueco PewDiePie, que tem 93 milhões de inscritos hoje, fazia piadas antissemitas em seu canal. Ele perdeu o patrocínio do Makers Studio da Disney e acusou a mídia internacional de “perseguição” e de “tirar as piadas de contexto”.
Apesar da debandada de alguns anunciantes da plataforma, o YouTube tem na sua mecânica de algoritmos o segredo para manter alguns criadores de conteúdo. Através de um sistema de recomendações sofisticado, que linka os conteúdos, a plataforma promove assuntos que estão sendo mais procurados e embute anúncios que geram dinheiro para a plataforma e o criador de conteúdo.
O problema é que, antes da eleição de 2018 e até a vitória de Bolsonaro, conteúdos políticos bolsonaristas foram beneficiados pela plataforma. De Joice Hasselmann, que surfou na onda dos protestos pró-golpe de Dilma, até Nando Moura, que atacou YouTubers como Felipe Neto, PC Siqueira e Cauê Moura, uma série de canais de extrema direita ganhou projeção e alcance. Muitas vezes desrespeitando os fatos e caindo na pura teoria da conspiração, como a tese falaciosa do “nazismo de esquerda”.
Por conta de conteúdos como esse e outros que cresceram internacionalmente, a diretora-executiva do YouTube, Susan Wojcicki, decidiu tomar providências com o conteúdo mentiroso na plataforma que entrava nas listas “Em Alta” na homepage do site em 2018. Como o algoritmo é automatizado e favorece conteúdos que já estão populares nas buscas, a empresa prefere agora cortar o alcance de vídeos mentirosos que podem comprometer suas receitas publicitárias.
Segundo o ranking global do SimilarWeb e do Alexa, listas reconhecidas internacionalmente, o YouTube é o segundo site mais visto no mundo todo, atrás das buscas do Google e na frente do Facebook.
A reação
Nando Moura chegou em 3,2 milhões de inscritos atacando grandes canais que começaram a reagir depois da eleição de Bolsonaro. Primeiro alvo de Nando, Cauê Moura deixou de fazer vídeos humorísticos e passou a comentar notícias, respondendo às críticas. PC Siqueira também gravou vídeos criticando a rede bolsonarista.
Embora não grave vídeos sobre política, Felipe Neto, um dos maiores YouTubers do Brasil, passou a usar sua influência para criticar a família Bolsonaro e a extrema direita. Com mais de 31 milhões de inscritos, Neto passou fazer alguns posts em seu Twitter para promover Henry Bugalho, Clayson e diversos outros vlogueiros.
De acordo com o Observatório da Imprensa, um relatório do Google informou em 2017 que 59% dos inscritos preferem se atualizar pelo YouTube do que ver notícias em texto. No ano seguinte, em 2018, a pesquisa Video Viewers apresentou um panorama sobre como os brasileiros estão consumindo vídeos na plataforma.
A mesma pesquisa aponta que, nos últimos quatro anos, o consumo da web cresceu 135%, enquanto que, no mesmo período, o consumo de TV aumentou 13%. A plataforma é o segundo maior destino para o consumo desse formato no Brasil, ficando apenas 3 pontos percentuais atrás da líder, a TV Globo. É maior, segundo o levantamento, que os demais canais de TV aberta, se somados em número de vídeos assistidos em views.
Há muitos outros canais progressistas, de cientistas e outros focados na esquerda, que estão crescendo na plataforma em reação ao olavismo e ao bolsonarismo. Os citados nesta reportagem são alguns dos mais ativos, mas há também o jovem Samuel Borelli, o humor escrachado do canal Galãs Feios, os mini-documentários informativos do Meteoro Brasil, o esquerdista Humberto Matos do Saia da Matrix, entre outros.
Essa rede que está se formando é estimulada pelo YouTube, que não quer mais impulsionar a desinformação, e deve ser ocupada pelos progressistas e pelas esquerdas. Muitos deputados da extrema direita, como MamãeFalei do MBL e Joice Hasselmann, foram eleitos graças às viralizações em vídeos.
Agora é o momento de especialistas e de diferentes ideias ocuparem de fato a plataforma. Contra as fake news e a desinformação.