Publicado originalmente no RFI
Professora da Université Paris-Diderot, Charlotte Castelnau-L’Estoile mergulhou nos arquivos brasileiros e portugueses para entender como a Igreja Católica adaptou as regras do casamento para a realidade da colônia brasileira. Durante a pesquisa, descobriu Páscoa, uma escrava angolana vendida ao Brasil como castigo e perseguida pela Inquisição por ter se casado novamente em Salvador.
A história de Páscoa, contada pela historiadora em um livro, mostra como a Inquisição portuguesa atuou no Brasil e em Angola, investigando e punindo de maneira exemplar. Mas revela também como os escravizados conseguiam manter a comunicação com sua família na África e encontravam brechas nas regras para lutar por um dos poucos direitos que tinham em uma sociedade escravocrata católica: o de escolherem seus parceiros.
O livro “Pascoa et ses deux maris : une esclave entre Angola, Brésil et Portugal au XVIIe siècle” (em tradução livre, “Páscoa e seus dois maridos: uma escrava entre Angola, Brasil e Portugal no século 17”) está sendo traduzido para o português e deve sair em breve no Brasil pela editora Bazar do Tempo.
Confira abaixo a conversa com Charlotte de Castelnau-L’Estoile.
RFI – Quem é a Páscoa, e o que ela nos traz de informações novas sobre esse período da história?
Charlotte de Castelnau-L’Estoile – A Páscoa é uma escrava angolana que nasceu por volta de 1860 em Massangano, em uma família luso-africana. Ela foi castigada aos 26 anos, e enviada ao Brasil, onde foi comprada por um notário público da Bahia. [Páscoa] foi processada por bigamia, isto é, ela casou uma vez em Angola e uma segunda vez no Brasil, e ela foi denunciada pelo seu próprio senhor.
Esse inquérito da Inquisição dá muitas informações sobre a vida de Páscoa na África, e isso é excepcional. Sabemos muito pouco sobre a vida na África daqueles que viraram escravos no Brasil, e graças a esse inquérito temos a vida toda dessa dupla escrava, que foi escrava em Angola e escrava no Brasil.
RFI – O livro fala sobre uma certa liberdade dos escravos. Que tipo de direito tinha um escravo no Brasil do século 17?
Charlotte de Castelnau-L’Estoile – O escravo tinha, em princípio, o direito à vida matrimonial. Isso não acontecia sempre, dependia também da vontade do senhor, mas, na teoria, um escravo poderia casar com uma pessoa de sua escolha, sem precisar de autorização. E isso era uma grande autonomia, e dava uma capacidade de atuar aos escravos. É isso que eu estudo: a capacidade dos escravos de escolher uma vida matrimonial e de defender esses direitos. Eles não tinham muitos outros direitos, o que tornava esse tão importante.
RFI – Chama a atenção o fato da Inquisição ter dedicado sete anos a um processo contra uma escrava. Por que Páscoa era tão relevante aos olhos da Igreja Católica?
Charlotte de Castelnau-L’Estoile – Tanto a Coroa portuguesa quanto a Igreja Católica queriam construir uma sociedade católica nas colônias, e a questão do casamento de escravos era importante na ideia dessa sociedade católica. O caso de Páscoa não é só um caso individual, mas uma questão de princípio. [Os escravos] tinham direito a casar, mas tinham as obrigações do casamento. E o casamento católico era único e indissolúvel. O processo de Páscoa era um processo exemplar, para mostrar não só aos escravos, mas aos senhores e também aos padres que o casamento [católico] tinha obrigações.
RFI – Mesmo sendo escravos, tanto Páscoa quanto seu marido do Brasil, Pedro, conseguem reunir informações e documentos de outros países para defender Páscoa e fazer um contra-processo. Você pode nos explicar um pouco sobre a comunicação entre Angola e Brasil nesta época?
Charlotte de Castelnau-L’Estoile – Isso é uma das informações mais interessantes do processo. O marido Pedro, que não é angolano, ele vem da Costa do Benin, vai tentar [em um processo] voltar a viver junto com Páscoa. Eles foram separados depois da denúncia contra Páscoa, [quando] Pedro foi vendido para outro senhor. Para esse processo, eles conseguem a apresentação de documentos de Angola através da mãe da Páscoa, o que foi uma surpresa.
Isso mostra que tinha tantas relações entre a Angola e o Brasil neste período que uma simples escrava podia mandar recados, com certeza orais, pois ela não escrevia. Mas ela conseguiu mandar recados para a família dela mesmo após dez anos separada em outro país.
Outros historiadores, como João José Reis, já mostraram relações entre a Bahia e a Costa da Mina [em Benin] no início do século 19, mas acho que para o século 17 esta é a novidade. Haviam relações interpessoais em um espaço de distância enorme, é o que mostra o processo de Páscoa. Era uma sociedade separada por um oceano, mas com relações muito próximas, muito fortes.
RFI – Que tipo de adaptação a instituição do casamento teve de ter para ser usada nas colônias?
Charlotte de Castelnau-L’Estoile – Uma adaptação muito importante foi a de que os escravos que vinham do interior do Brasil ou da África poderiam se casar novamente desde que o primeiro casamento não fosse católico. O direito canônico vem da Europa e precisa se adaptar no Brasil. Mas isso tem limites, porque [o casamento] faz parte do dogma católico.
RFI – O casamento era um passo para a mobilidade social nesta sociedade escravocrata?
Charlotte de Castelnau-L’Estoile – Tinha uma mobilidade social importante nesta sociedade, primeiro com a alforria, que era mais fácil para escravos urbanos do que para os escravos de fazenda. O casamento podia ser um passo para a alforria, mas podia também ser um passo para a escravidão. Por exemplo, com os indígenas. Quando um índio casava com uma mulher escrava africana, os filhos deste casal seriam escravos. Então, esse tipo de casamento encerrava mais [pessoas] nessa sociedade escravocrata. Não é só uma mobilidade social em direção à liberdade, mas às vezes é uma mobilidade social que leva à escravidão.
RFI – O que ainda vemos de marcas desse catolicismo colonial no Brasil de hoje?
Charlotte de Castelnau-L’Estoile – Fiquei surpresa com a ideia do Sínodo da Amazônia sobre a possibilidade de casamento dos padres. [Isso mostra] de novo esse diálogo entre a cristandade local no Brasil e o centro do Catolicismo em torno do mesmo tema, o casamento. Seja no século 21 ou no século 16, estamos falando da adaptação local do cristianismo.