Homem que culpou ajudante negro por roubo é PM, mas polícia escondeu isso

Atualizado em 10 de setembro de 2020 às 9:11

PUBLICADO NA PONTE

POR ARTHUR STABILE E PALOMA VASCONCELOS

Rafael Ribeiro Santana, 27 anos, está preso desde 17 de julho, acusado de roubar o celular de uma criança no Parque da Independência, Ipiranga, zona sul da cidade de São Paulo. Mas testemunhas, vídeos e documento fiscal indicam que, na hora do crime, ele estava em um supermercado comprando salsicha para o seu patrão, dono de um carrinho de cachorro-quente. Uma das vítimas do roubo que acusou Rafael, cujo relato foi determinante para a sua prisão, é um policial militar. No entanto, a presença do PM no caso foi omitida dos registros policiais.

Um vídeo divulgado pela Ponte mostra o momento em que uma mulher, mãe da criança que teve o celular roubado, e um homem culpam Rafael pelo crime e o fazem esperar pela chegada da PM. Na cena, o homem que aponta o jovem ajudante como o autor do crime é Paulo Eduardo Lombardi, um cabo da PM paulista. Ele trabalha 17º BPM/I (Batalhão de Polícia Militar do Interior), localizado na cidade de São José do Rio Preto, interior do estado.

O registro, feito por um amigo de Rafael que percebeu as acusações, mostra o PM Paulo xingando de “lixo” e “vagabundo” as pessoas que estavam próximas. Eles davam sua explicação sobre o que havia ocorrido, buscando inocentar o ajudante. Quando os policiais militares, chamados pelo casal, se aproximam, é o cabo Lombardi quem vai falar com eles e apontar Rafael como o autor do crime.

Apesar de tudo isso, os PMs Rodrigo Gomes Feitoza e Thiago Dutra Costa, que conduziram a ocorrência, e o delegado Luiz Patrício Nascimento, do 17º DP (Ipiranga), não incluíram o nome do policial Lombardi no Boletim de Ocorrência, que é o registro oficial do caso. É como se Paulo não existisse durante a ação que culminou na prisão de Rafael.

Lombardi é cabo da polícia em São José do Rio Preto | Foto: Reprodução/Facebook

A advogada Thayná Yaredy, presidente da deFEMde (rede feminista de juristas) e vice-presidente da Comissão da Igualdade racial da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), acredita que o PM Paulo agiu com abuso. “Ele deveria se manifestar enquanto policial se havia um crime. Ele precisa explicitar isso. Agora eu entendi por que o Rafael foi preso tão rápido, porque é a palavra do policial”, aponta a advogada.

“Precisamos entender se a fé pública que ele tem enquanto policial vale no dia de folga dele, para ele dizer que uma pessoa estava no local e cometeu determinado ato quando ela não estava, porque temos as imagens da câmera do supermercado”, completa Thayná.

A advogada criminalista Fernanda Perón considera que a omissão do papel de Lombardi no Boletim de Ocorrência não é um grande erro. “Por mais que a lei determine a identificação das testemunhas, não vejo que a polícia precisaria necessariamente identificar esse policial no B.O., porque ele não foi testemunha do crime, mas somente da abordagem depois. Claro que seria recomendável, mas, a princípio, não sei se isso constituiria uma irregularidade”, explica.

Rafael (à esq.) foi apontado por Lombardi como autor do roubo | Foto: Arquivo pessoal

No entanto, a advogada diz que, cabem punições administrativas ou criminais “se ficar demonstrado que o policial militar em questão utilizou de sua função pública de forma a pressionar ou incitar os demais agentes estatais a fazer ou deixar de fazer alguma coisa”. “Além disso, se houver algum elemento indicando que a Polícia Civil omitiu os dados e a profissão deste policial propositalmente, buscando dificultar a descoberta de sua participação ou influência na prisão de Rafael, isso poderia indicar que houve algum tipo de favorecimento, o que pode gerar a responsabilização dos envolvidos”, afirma.

Vítima nega racismo: ‘o pai da minha filha é negro’

A vítima do roubo, mãe de uma criança de 10 anos, conversou com a Ponte na tarde deste sábado (10/11). Ela disse estar abalada com a situação, dizendo que o compartilhamento do vídeo em que Rafael é pressionado, antes da abordagem, gerou ameaças à sua família. Como ela não é uma servidora pública e sua condição no processo é de vítima, a Ponte atendeu ao seu pedido de não expor sua identidade.

“Temos medo de sair na rua, de trabalhar, estamos sendo acusados de sermos racistas. Não temos tido paz, recebemos ligação toda hora. Está tendo uma inversão de valores muito grande, fomos vítimas de um crime, independente de ser uma menina branca, parda, negra. É uma situação muito constrangedora. Os direitos humanos estão querendo defender uma pessoa… Não sou eu que tenho o poder de prender ninguém”, disse a mulher. “Descobrem meu perfil Facebook, sou atacada junto da minha filha de todas as formas, como uma mulher branca, de marido branco e filha branca, como se fôssemos… E o pai da minha filha é negro, entendeu?”, diz.

A pedido da reportagem, ela descreve o dia 17 de junho como uma data em que “ensinaria a história do Brasil para as duas filhas”. No entanto, o Museu do Ipiranga, que fica dentro do Parque da Independência, está em reformas e não foi possível levar as garotas até lá. Então decidiram aproveitar a viagem de São José até São Paulo para curtir o parque. Foi quando, segundo ela, a menina levantou o celular para tirar uma foto. Nesse momento, um jovem negro, que ela afirma ser Rafael, teria pegado o celular da criança e fugido de bicicleta. Um guarda do parque teria se recusado a atuar, dizendo que “não poderia fazer nada”, segundo a mulher.

Imagens enviadas pela vítima do que ela considera ser ameaças enviadas no Facebook

“Eu vi e tentei parar a bicicleta, mas ele passou. Até me machuquei nessa hora, luxei o dedo no aro da bicicleta. O Paulo não estava com a gente nessa hora. Em seguida, comecei a procurar o rapaz e o vi entregando a capinha do celular para um homem, foi quando tentamos abordá-lo”, disse a mulher. Durante a procura, a vítima descreve que percorreu áreas internas e externas do parque para reencontrar o assaltante. Foi quando, já com o PM Lombardi presente, encontraram Rafael dentro do parque, momento registrado no vídeo publicado pela Ponte.

A mulher nega estar acusando a pessoa errada. “Tenho plena certeza, eu não sou criança, não sou moleque. Está tendo uma inversão de valores. Eu não seria uma inconsequente de acusar uma pessoa da qual eu não teria certeza. Eu tenho família, tenho três filhos. Não cabe à mim prender, eu relatei o que aconteceu. É a polícia que prende, o delegado que prende e quem será responsável por isso será a Justiça. E seja o que Deus quiser”, comenta.

Imagens enviadas pela vítima do que ela considera ser ameaças enviadas no Facebook

Ponte questionou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, administrada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), sobre a omissão do nome do PM Lombardi do registro oficial da ocorrência. Até o momento, a reportagem ainda aguarda um posicionamento oficial.