“Houve um convocação do chefe do Hamas para ação na Europa”, diz pesquisador ao DCM

Atualizado em 21 de outubro de 2023 às 9:45
Memorial às vítimas de atentados terroristas na França. Foto: Willy Delvalle/DCM

O Palácio de Versalhes foi evacuado pela quinta vez na sexta-feira em menos de uma semana por ameaças de bomba. Enquanto isso, 15 aeroportos na França passaram pelo mesmo procedimento, levando ao cancelamento de 130 voos.

Segundo o Ministério do Interior, as ameaças eram falsas e os responsáveis deverão ser encontrados e punidos. Mas o clima de pânico se propaga depois que Paris e Bruxelas elevaram o alerta para atentados ao nível máximo.

Na última sexta, Mohammed Mogouchkov, 20 anos, russo, invadiu a escola onde estudou em Arras, no norte da França, e matou a facadas o professor de literatura Dominique Bernard, deixando outros três feridos. O jovem foi preso. Segundo a imprensa do país, ele teria gritado “Allahu Akbar” durante os atos, o que significa “Deus é grande”, em árabe.

Na segunda-feira, Abdesalem Lassoued, 45 anos, tunisino, fuzilou três pessoas, matando duas, de nacionalidade sueca. Eram torcedores de futebol que assistiriam o amistoso contra a Bélgica. O terrorista foi morto pela polícia. De acordo com a imprensa belga, ele dizia pertencer ao Estado Islâmico.

Tudo ao mesmo tempo em que Hamas e Israel guerreiam no Oriente Médio. Estará a guerra se expandindo pela Europa?

Segundo Hugo Micheron, especialista em terrorismo islâmico europeu, o vinculo é indireto, mas “houve uma convocação por parte do chefe do Hamas na Europa para passar à ação”.

Em entrevista ao DCM em meio a um pool de veículos de imprensa na Europa, o pesquisador afirma que “os islamistas do Oriente-Médio identificaram muito bem que há uma frente potencial na Europa. Nesse dia, o atirador de Arras passou à ação.”

Para compreender a sequência de ataques, o professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris e da universidade de Princeton vê na guerra Israel-Hamas um elemento favorável, mas o problema vai além.

Nesta entrevista, Micheron restitui a historia por trás dos atentados e aponta como a pregação islâmica de alguns indivíduos nos anos 1980 desenvolveu um terrorismo local na Europa, com redes conectadas ao Estado Islâmico e prontas para agir a qualquer convocação atual do Hamas.

DCM: Ja é possível estabelecer um vínculo claro entre a guerra entre Hamas e Israel e os atentados que ocorreram na ultima semana em Paris e Bruxelas?

Hugo Micheron: Não há um vínculo direto entre o atirador de Arras e o de Bruxelas no sentido de que não pertencem ao Hamas. Pelo contrario, há um que se reivindicou do Estado Islâmico. O outro, seu ambiente ideológico parece mais o do Estado Islâmico. Então, não há ligação orgânica. Mas, dito isso, é preciso lembrar que houve uma convocação por parte do chefe do Hamas na Europa para passar à ação, sinal de que os islamistas do Oriente-Médio identificaram muito bem que há uma frente potencial na Europa. Nesse dia, o atirador de Arras passou à ação.

Viu-se em suas redes sociais que ele havia sido muito sensível à situação na Palestina, publicando conteúdos pró-Hamas. Houve um efeito de deflagração do ataque do Hamas, pela sua natureza. O fato de que tenha sido um ataque surpresa de uma violência absoluta é extremamente mediatizado por Israel. Nas redes sociais, os meios islâmicos na Europa se investiram e estão num nível de engajamento, publicações e atividade na internet muito elevado. Todos os grupos – pró-jihadistas, pro-salafistas, pro-Irmandade Muçulmana.

Evidentemente, isso cria um contexto favorável. Não é o único contexto. Há uma dinâmica jihadista presente desde 2020, do Afeganistão ao Sahel, passando pela Síria e o Iraque. Essa dinâmica também está presente na Europa, com pessoas na prisão, que saem da prisão, e isso vê-se no caso de Arras. Houve uma coordenação com um jihadista que estava preso.

O jihadismo não funciona por intermitência. Não há atentados de vez em quando que nos lembram que o jihadismo existe. Há fluxos e refluxos, são dinâmicas e nessas dinâmicas há métodos terroristas que às vezes são utilizados e essa é a situação atual. Ela é favorecida pelo contexto internacional. Mas a dinâmica estava presente antes do 7 de outubro, antes do ataque do Hamas.

Isso nos lembra duas coisas muito importantes que não vi muito no debate público. Em primeiro lugar, até que ponto o conflito entre Israel e Palestina, apesar do processo de normalização em curso, permaneceu um assunto extremamente inflamável no Oriente Médio e nas opiniões públicas mundiais.

Vemos que o debate sobre o assunto volta à tona de diferentes maneiras na Europa, nos Estados Unidos… Nas universidades, há querelas muito vivas, assim como na imprensa americana. A cena islamista europeia é também muito inflamável justamente porque os indivíduos têm diferentes palavras de ordem, de se mobilizar e passar à ação.

O pesquisador Hugo Micheron. Foto: Francesca Mantovani/Editions Gallimard


Na França, o terrorista que matou o professor Dominique Bernard tem a mesma nacionalidade e origem que o terrorista que matou o também professor Samuel Paty três anos atrás. Qual é o lugar desse grupo do Cáucaso e em particular da Tchetchênia nesse movimento?

O lugar do Cáucaso no jihadismo europeu é considerável. O assassino de Samuel Paty era de origem tchetchena, mas ele havia crescido e ido à escola francesa. O assassino de Dominique Bernard é inguche, que também é uma região do Cáucaso. Por que o Cáucaso é muito importante? Porque é uma zona jihadista mítica para os jihadistas europeus.

É um desses jihads nos anos 1990 que foi muito mobilizado, indo além das redes tchetchenas. Nos anos 1990, havia três cenas jihadistas muito importantes para o jihadismo europeu: a guerra civil argelina, com o grupo GIA, que vai desenvolver redes na Alemanha, Bélgica, França e em Londres; há um conflito na Bósnia, onde serão encontrados vários veteranos do Afeganistão que se instalaram na Bósnia e criaram as primeiras filiais europeias, principalmente britânica, alemã, francesa, belga, e que terão consequências sobre a formação dos europeus na sequência; o jihadismo na Chechênia toma forma na guerra contra a Rússia.

Há duas guerras na Chechênia e a segunda, que começa a partir de 1999, é muito importante para a Rússia de hoje, pois é de uma certa forma o que deu legitimidade a Vladimir Putin. Foi dizendo aos russos que ele resolveria a situação na Chechênia, principalmente que ele iria matar os jihadistas, que ele conseguiu assentar seu poder e sua legitimidade em Moscou. Simbolicamente, isso é muito forte.

O exército russo não teve piedade. Os jihadistas que sobreviveram e se tornaram veteranos da guerra na Chechênia vão exercer um papel extremamente importante na estruturação das redes jihadistas, principalmente no Iraque, e depois no meio dos anos 2010 na Síria.

Para citar um exemplo, no meu primeiro livro eu evoco o fato de que os europeus foram amplamente formados quando estavam na Síria e no Iraque por formadores militares tchetchenos, que tinham a reputação de serem os melhores combatentes do Estado Islâmico.

O equivalente ao Ministro da Defesa do Estado Islâmico, um certo Omar “El Chicheni”, era um tchetcheno, como seu apelido o indica. Eles têm uma reputação de combatentes que lhes serviu muito na Síria e no Iraque e que participou muito da formação de europeus que, em muitos casos, hoje estão presos. Sua legitimidade para os jihadistas remonta aos anos 1990.

Não há muitos jihadistas que perduraram 20 anos como o que se pôde ver na Tchetchênia. No caso da Europa (dos atentados), as famílias não eram jihadistas, não estavam implicadas nas redes jihadistas dessa época, mas eles fugiram da guerra na qual os jihadistas estavam muito implicados.

O que é bastante surpreendente é ver como a geração seguinte, que cresceu na França e se beneficiou do asilo, se volta para aquela causa. Os franceses de origem tchetchena ou os tchetchenos que moram na França estão desproporcionalmente representados nos setores jihadistas.

Estimam-se em torno de 30 ou 40 mil franceses de origem tchetchena morando na França e 70 pessoas que partiram para a Síria na década passada, o que significa que eles estiveram bastante presentes. Isso é um nível muito elevado (de mobilização para o Estado Islâmico). Considera-se Trappes (cidade a 40 quilômetros de Paris) a capital do jihadismo.

O que leva esses jovens europeus, ou descendentes de comunidades excluídas, a aderir a essas ideologias – o racismo, a pobreza…?

A questão que você acaba de fazer é o ponto de partida das minhas pesquisas, principalmente da história do jihadismo europeu. O que eu mostro é que o jihadismo não caiu do céu. Houve num dado momento alguém que foi o primeiro jihadista, os veteranos do Afeganistão no conflito dos anos 1980 e que se instalaram em cidades (europeias) e implementaram máquinas de pregação.

Eles implementaram estruturas para difundir suas ideias. Nos anos 1990, havia lugares bastante precisos. Eram bem pequenos. Nada época, ninguém poderia imaginar que essas poucas dezenas de militantes nos anos 1990, implantados em uma quinzena de cidades europeias, poderiam levar levar mais de seis mil europeus a uma organização jihadista na Síria e no Iraque 25 anos depois. Nenhum cérebro louco poderia imaginar isso.

Mas é nisso que eles acreditavam e diziam. Por um lado, isso mostra que a ideologia jihadista é muito poderosa. Uma ideologia que nasce nos confins do Himalaia e que em uma geração leva 6 mil europeus a um projeto de construir um califado no meio do deserto sírio não é negligível. É isso que não se levou a sério. Isso tem uma potência utópica, uma potência mobilizadora, uma potência identitária que é muito forte.

Essas redes jihadistas têm uma capacidade de treinamento hoje pelo simples fato de que cresceram. Isso é um pouco difícil de compreender. Um fenômeno que afeta algumas dezenas de pessoas não é o mesmo que um fenômeno que atinge 6 ou 10 mil pessoas na Europa.

Uma vez que as redes militantes existem, a ideologia se propaga. Chegou-se a esse ponto porque há 10 ou 15 anos não se conseguiu erradicar a pregação de alguns pregadores jihadistas. Um bom ponto de comparação é a Itália.

Na Itália, eles tinham o mesmo tipo de rede jihadista que se implantou nos anos 1990. Na Itália, eles foram desmantelados de modo bastante rápido. Resultado: eles não têm jihadismo endêmico, um jihadismo endógeno. Há células, mas eles não estão por todo o território.

Essa situação não pode ser compreendida olhando para 2020 e 2023. Essa situação só pode ser compreendida tendo em vista o que aconteceu ao longo de 30 anos. Isso também permite compreender que o fenômeno não será resolvido em dois meses.