Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor
IDEIA PARA UM CONTO BORGIANO EM TEMPOS DE PANDEMIA
(Na verdade, mais para Black Mirror)
Personagem classe média, em home office, mulher e filhos pequenos, se tranca na dispensa com um laptop para participar de uma série de reuniões durante o dia sem ser importunado.
A primeira prolonga-se além do tempo, ele entra na segunda pelo celular, a primeira termina, ele engata numa terceira enquanto a segunda perde-se numa espiral de relatórios e urgências inadiáveis, não sai para almoçar e nem para ir ao banheiro. A mulher, entretida com os filhos faz jantar para os pequenos, dá banho em cada um e dorme exausta com os dois, na cama.
Dia seguinte acorda tarde, vai até a dispensa, porta trancada, vozes variadas, ela imagina que o conge segue em nova rodada com o pessoal da matriz, ou com a equipe de vendas, cuida da casa, entretém-se com as crianças, faz almoço, janta, limpa cocô até que, oito da noite, decide voltar à dispensa, bate na porta, ouve vozes, busca a cópia da chave, não encontra, tenta arrombar inutilmente, grita, chora esperneia, não consegue chamar ninguém por força do isolamento e passa a noite em claro.
Dorme na manhã do terceiro dia, enquanto as crianças pintam e bordam pela sala, quartos e cozinha. Ninguém se machuca. Resolve chamar o cunhado, desconfia que o marido teve algum treco no meio do trabalho – covid não pode ser, não é tão rápido assim – e caiu em cima do computador. Chega cunhado com um pé de cabra e máscara, arromba a porta e não há ninguém no recinto. Olham por todo lado, ele não podia ter se jogado pela janela basculante – é muito pequena – e ficam sem saber o que fazer.
De repente, do fundo da tela do computador, Zoom ligado, ouvem um fio de voz ao longe:
– Ajuda!! Pelamordedeus! Me tirem daqui, rápido, vai acabar, vai acabar…
Puf! A bateria chega ao fim, a tela escurece, o computador desliga.
Nunca mais volta. Ninguém tem seu login e senha.