Igreja de SC protege padre pedófilo condenado a 26 anos de cadeia. Por Renan Antunes

Atualizado em 1 de março de 2019 às 9:15
O frei Paulo Back nos tempos em que estava na ativa

POR RENAN ANTUNES DE OLIVEIRA

O terremoto causado pelo Papa Francisco em responsabilizar padres pedófilos fez as autoridades eclesiásticas de Santa Catarina se mexerem para proteger um dos seus, o franciscano Paulo Back, 75.

Ele foi condenado em 2015 pela Justiça a 26 anos por abusos praticados em coroinhas e seminaristas sob sua guarda no Rio Grande do Sul, SC, PR, SP, RJ e ES, ao longo de 44 anos de sacerdócio, mas ganhou o direito a prisão domiciliar depois de oito meses de cadeia e aguarda recurso ao STJ.

No início de janeiro, Back foi discretamente transferido de seu refúgio de então, a Casa Episcopal São João Vianney, em Criciúma, para outra instituição religiosa, no interior do RS, cujo nome não foi revelado.

Sorte do padre: hoje ele aguarda num limbo jurídico, porque sua prisão domiciliar tem condições excepcionais, dá para dizer que são melhores do que a liberdade plena.

Eu entrevistei Back em janeiro de 2016 para o Jornal Já Porto Alegre.

Até a recente transferência ele viveu numa baita mordomia: a prisão domiciliar dele foi cumprida no Palácio Episcopal, a residência oficial do bispo de Criciúma, num condomínio luxuoso e arborizado.

Melhor, impossível – lá, ele tinha a chave do portão.

Saía às ruas quando queria, como para suas sessões de acupuntura e passeios pelas redondezas.

Recebia visitas a qualquer hora, todos os dias.

Ocupou uma suíte privativa equipada com combo TV-fone-internet.

As refeições eram feitas na cafeteria do condomínio, preparadas pelas mesmas cozinheiras do bispo e servidas por copeiras – o serviço de copa lá é das 6 às 22.

O ambiente é levíssimo: à mesa, ele tinha a companhia de seminaristas, religiosos em trânsito na cidade e padres aposentados.

Nas horas vagas se dedicava a cuidar do meio ambiente do condo: cultiva flores e verduras nos jardins do episcopado.

SE DISSE VÍTIMA POLÍTICA

O padre recebeu este repórter na manhã de um sábado de janeiro de 2016, na sala de visitas do condomínio.

É um salão acolhedor, com um conjunto de sofás, TV a cabo e ornada com um retrato de um padre da congregação, a Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil.

Ao primeiro contato, ele se mostrou um homem afável.

Alto e magro, o padre sentou numa cadeira ao lado esquerdo da minha poltrona, apoiou sua mão direita no meu braço e com suavidade perguntou o que poderia fazer por mim.

Talvez pelo hábito de receber confissões, ele desviou os olhos azuis e sua voz se tornou só um sussurro, encorajador: “Fale, meu filho”.

Me identifiquei como repórter. Ele nem piscou. Perguntei, com a delicadeza possível : “Padre, o senhor é um homem condenado por pedofilia e eu queria saber…”

Ele fez uma leve pressão no meu braço para me interromper, jogou a cabeça para trás, continuou me segurando, elevou a voz um pouco: “Já expliquei mil vezes…”

Deixei ele falar: “Foi uma armação política contra mim, porque meu sobrinho era candidato do PSDB à vaga de vice de Forquilhinhas” – cidade vizinha de Criciúma, onde ele nasceu e estava como pároco da igreja Sagrado Coração de Jesus até ser detido, em julho de 2012.

O repórter esperava ouvir dele uma confissão, mas ele estava no modo de combate: “Se você for ler o processo verá que a principal acusação contra mim partiu de um menino perturbado. Era um gordinho que tinha umas tetinhas e por isto sofria bullying dos coleguinhas, tenho muita pena dele”.

Argumentei que a primeira acusação surgiu apenas em 2011, porém logo se tornou uma enxurrada de 40 casos recolhidos pelo Ministério Público Estadual (MPE).

O padre então me mandou ler o processo, mas sabe que isto é impossível porque ele corre em segredo de justiça, por envolver menores.

Segundo o MPE, depois que os pais do menino gordinho fizeram a primeira denúncia e a prisão dele foi divulgada, 11 adultos procuraram a polícia com acusações semelhantes.

Em dezembro de 2012, Back foi condenado a 20 anos de cadeia pela Comarca de Forquilhinhas, por “atos libidinosos diversos da conjunção carnal” – por vários relatos de advogados que viram o processo ele gostava de exibir-se pelado e apalpar a genitália dos meninos.

A repercussão na imprensa catarinense foi mínima. Em maio de 2014, o MPE recorreu da decisão ao Tribunal de Justiça e conseguiu aumentar a pena para 26 anos – no final de 2015 a defesa dele levou o caso ao STJ, obtendo o direito de esperar pela sentença na confortável casa do bispo.

Frei Paulo Back cuida das flores

TERRA DE SANTOS

Até a revelação do escândalo o padre Back era reverenciado em Forquilhinhas, por sua origem. Seus pais e os de uma dupla de santos, seus conterrâneos dom Evaristo e dona Zilda Arns, fundaram a cidade.

Foi o próprio dom Evaristo quem ordenou Back sacerdote, em 1968.

No processo, não foi possível precisar o número de pessoas que teriam sido vítimas dele em sua carreira religiosa, iniciada aos 10 anos, em 1954, num seminário do Paraná.

Os promotores contataram cerca de 40, mas estimam que este número pode chegar a 100 porque Back atuou em dezenas de paróquias e seminários de seis estados por mais de quatro décadas.

Nenhum dos hoje adultos quis testemunhar.

ESTUDIOSO

Aquela conversa com o repórter em 2016 na salinha de espera se tornou um papo de barbearia – a esta altura ele já tinha soltado meu braço.

Back contou que tinha a tarefa de ensinar temas da sexualidade aos adolescentes sob sua guarda porque “os pais não ensinam aos filhos, é um tema tabu”.

Ele disse que “os meninos (nos seminários) dizem uns aos outros que ‘quem não se masturba é viadinho’, o que afeta alguns” – cabia a ele dar a orientação correta sobre o tema.

Back mergulhou na internet para estudar os casos de abusos de padres católicos ocorridos em Boston (EUA), de grande repercussão internacional e tema de um filme que ganhou o Oscar naquele ano.

Sem que ninguém lhe perguntasse, ele comparou os casos e tirou o corpo fora: “Nunca houve nada parecido aqui no Brasil, não é um tema presente nas nossas igrejas católicas” – não era, mas em 2019 a situação está bem diferente.

O bispo da cidade que o acolheu depois da condenação não quis dar entrevista – talvez porque já em 2015 o Papa Francisco pedira aos católicos para não mais acobertar casos de pedofilia, autorizando inclusive abertura de processos contra os bispos que o fizessem. Os novos ventos da Igreja agora estão mais fortes ainda.

NO SALÃO DE BELEZA

Em Forquilhinhas, a mãe de um dos meninos que constam da denúncia inicial pediu para falar sem ser identificada, porque revelaria a identidade do filho – o que aliás, não é um mistério, porque toda cidade sabe quem ele é.

“O que mais me choca é que o pessoal falava mal deste padre, durante anos a gente ouvia coisas. Mas eu achava que era fofoca, até que ele deu em cima do meu filho”, disse a mãe, ainda enfurecida.

Ela contou que “na mesma hora em que eu soube peguei meu menino pela mão e corri para a delegacia”. Deu no que deu.

Na defesa, o padre manteve a tese de perseguição política por causa da candidatura do tal sobrinho: “Eu tinha muita influência na cidade, queriam me tirar da disputa”, sustenta. Com o escândalo, o sobrinho abandonou a candidatura e a política, de uma vez por todas.

PERSEGUIDO

Lembro bem que o padre levou este repórter para visitar suas hortas e posar para algumas fotos.

Pediu que não publicasse sua história porque “isto pode me complicar” – eu disse que publicaria no Jornal Já, como fiz.

Ele sempre insistiu em sua inocência: “É uma provação. Me sinto um homem feliz por ter tido uma vida religiosa plena, ajudei milhares de pessoas. Se hoje sou perseguido, nada mais é do que mesma coisa que aconteceu com São Pedro, São Paulo e o próprio Jesus”.

Naquela vez, apesar das comparações, quando nos despedimos ele curvou a cabeça com humildade: “Vá com Deus”.

Na quinta, 28 de fevereiro, as freirinhas que cuidam da casa episcopal de Criciúma não quiseram me dizer qual o novo endereço dele.

A única informação disponível era que “aqui eles nos ajudava muito no trabalho pastoral”, citando a transferência recente para o Rio Grande do Sul.

Elas me passaram o número do celular dele.

Liguei ao entardecer, mas caiu na caixa postal.

Paulo Back