Road Town, a capital das Ilhas Virgens Britânicas, foi muito afetada pelo furacão Irma, conforme mostram as imagens, mas brasileiros com negócios lá não precisam se preocupar: o furacão não atinge as empresas virtuais, que é o que os brasileiros têm naquele que é um dos maiores centros de offshores do planeta.
Empresa de papel, que não existe no mundo das coisas concretas, palpáveis, apenas em cartório, para aproveitar mecanismos legais que garantem o anonimato de seus proprietários.
Sempre que vem à tona um escândalo internacional de lavagem de dinheiro, aparecem nomes de brasileiros associados a essas empresas de paraíso fiscal.
O nome de João Doria e da mulher, Bia, apareceram na papelada do escritório panamenho Mossack Fonseca, conhecida como Panamá Papers.
Doria é dono da Pavilion Development Limited, offshore usada para comprar um apartamento em Miami, em 1998.
O apartamento, que custou de 281 mil dólares, sempre esteve registrado em nome de Pavilion e, não fosse o escândalo da Mossack, jamais se ligaria a Pavilion a Doria.
Quando foi procurado para falar da offshore, na pré-campanha à Prefeitura em 2016, Doria indicou o advogado para dar explicações aos jornalistas.
A declaração foi característica nesses casos: ter empresa em paraíso fiscal não é ilegal, crime pode haver no que se faz com a offshore.
Os irmãos Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto Marinho negaram, até onde puderam, a propriedade de uma empresa constituída nas Ilhas Virgens, a Empire.
Quando uma investigação da Receita Federal deixou evidente a ligação da offshore com a Globo, constituída para adquirir os direitos de transmissão da Copa do Mundo em 2002 sem pagar impostos no Brasil, assumiram o controle e, por isso, foram enquadrados por crime contra a ordem tributária.
Naquele caso, não havia dúvida: era 100% fraude.
Na véspera da denúncia ser encaminhada para o Ministério Público Federal, o processo desapareceu da Receita Federal no Rio, subtraído por uma funcionária.
O caso, tanto o da sonegação quanto o da subtração do processo, acabou sem punição.
A funcionária ficou só três meses presa e foi solta por um HC de Gilmar Mendes (que coincidência!).
Hoje, demitida da Receita, ela mora num apartamento de 4 milhões de reais, num prédio ao lado daquele onde Roberto Marinho tinha um triplex, na Avenida Atlântica, usado para festas de reveillon que eram famosas.
Nas Ilhas Virgens Britânicas, também foram encontradas empresas do ex-presidente da CBF, Ricardo Teixeira, do presidente da CSN, Benjamin Steinbruch, do apresentador de televisão Carlos Massa, o Ratinho, e do diretor-geral da Globo (olha ela aí de novo), Carlos Henrique Schroder.
Se não é crime ter empresas em paraíso fiscal, por que então é que os ricos preferem manter firmas em locais onde nunca colocaram os pés?
É para não pagar impostos no Brasil.
Há alguns anos, quando se falava na possibilidade de aumento da alíquota de imposto para rendas maiores, o advogado Ives Gandra Martins veio a público para dizer que o tiro sairia pela culatra.
Eu o entrevistei na época. Ives disse que aumentaria o número de executivos que fariam contratos no exterior — trabalhariam aqui, mas receberiam lá fora, sem pagar impostos no Brasil.
Em alguns países, essa conversa de planejamento tributário não cola.
Em Londres, há alguns anos, ingleses realizaram manifestação em frente à Starbucks quando veio a público que a rede de cafeterias usava brechas na lei para pagar impostos em países com menor tributação.
Quando estourou o escândalo do Panamá Papers, o mesmo em que João Doria emergiu, apareceu o nome do político islandês Sigmundur Gunnlaugsson.
As condições eram parecidas.
O islandês teve que renunciar ao cargo de primeiro-ministro. Em São Paulo, Doria foi eleito, com discurso de gestor, não político.
Por aqui, com um noticiário que esconde o problema da sonegação enquanto amplifica o da corrupção — na verdade, duas faces da mesma moeda —, deixar de pagar impostos parece quase tão natural quanto o sol nas praias do Rio ou a garoa em São Paulo.
Quem relacionou Ilhas Virgens aos cofres dos ricos no Brasil foi Lauro Jardim, de O Globo, em uma nota na sua coluna.
“Os negócios foram preservados, mesmo com o furacão da categoria cinco: os cofres-fortes estão intocados”, escreveu.
Ele sabe que não há cofre lá, só papel ou informação armazenada nas nuvens. Foi licença poética.
Talvez não tenha se lembrado do escândalo da sonegação da Copa do Mundo.
Isso acontece na Globo com alguma frequência, e há muito tempo.
Há cerca de trinta anos, um cinegrafista fez o registro do contraste social no Rio de Janeiro.
Em uma sequência de imagens sem corte, ele mostrou casas no morro, passou por crianças pedindo esmola na rua e terminou em um iate monumental.
A sequência foi elogiada e saiu no Jornal Nacional, mas, em vez de receber prêmio, ele quase perdeu o emprego.
O iate era de Roberto Marinho, que ligou para a redação exigindo a demissão do cinegrafista.
Achava que era provocação.
Não era.
Os editores fizeram o que não era incomum na Globo: colocaram o cinegrafista na geladeira até passar a raiva de Roberto Marinho.
Alguns dias depois, o cinegrafista já estava de volta à rua, só que mais atento, para evitar que, ganhando um bom take, acabasse perdendo o emprego.