O jornalista da Globo César Tralli, com a arrogância peculiar com que os apresentadores de jornais da Globo tratam de Economia, apresentou, como um grande feito do governo Bolsonaro, ter legado ao sucessor um superávit nas contas públicas de R$ 52 bilhões em 2022, enquanto o governo Lula projeta um déficit de R$ 232 bilhões para este ano. Para a imensa maioria da população informada pelo jornal isso seria “prova” da irresponsabilidade fiscal do atual presidente. Para mim, é o oposto.
Por trás do superávit de Bolsonaro estão 33 milhões de brasileiras e brasileiros em situação de fome, 65 milhões em situação de insegurança alimentar, 9 milhões de desempregados, mais de 20 milhões de subempregados – 11 milhões chamados eufemisticamente de microempreendedores -, uma imensa maioria da população sem direito a abastecimento de água e serviços de esgotos, além de um grande déficit habitacional, de educação, de saúde e de transportes públicos.
Já por trás do déficit das contas públicas projetado por Lula estão seus grandes programas sociais como o Bolsa Família, a assistência integral às famílias pobres, o esforço para promover o desenvolvimento sustentável a fim de estimular a criação de empregos, a luta contra o desmatamento da Amazônia, a proteção aos índios, a retomada de mais de 20 mil obras públicas que foram paralisadas nos governos anteriores – caracterizando, nesse caso, a absoluta irresponsabilidade com recursos públicos.
Se Tralli tivesse o mínimo de instrução em Economia, saberia que não é o déficit público que provoca inflação e instabilidade. É o desequilíbrio entre oferta e demanda no mercado dos bens e produtos reais. Este é certamente um princípio que se reconhece mundialmente desde os primórdios dos estudos de Economia. A ideia de que é o déficit público que provoca a inflação é uma ideia bizarra que devemos ao economista Milton Friedmann, criador do ultrapassado monetarismo.
Para Friedmann, inflação é um fenômeno monetário, isto é, resultante de aumento da quantidade de moeda em circulação na economia, pressionando a demanda, em face da quantidade de bens e produtos ofertados no mercado. Se isso fosse realidade, o aumento do preço do pão francês numa padaria seria devido ao aumento de alguns bilhões de reais de déficit público. Isso, obviamente, é um contrassenso. É esse contrassenso que leva a políticas econômicas equivocadas no mundo real.
O aumento do preço do pão francês se deve ao aumento do custo da farinha de trigo, do óleo, dos transportes e da energia elétrica, além de outros insumos. Nada disso tem a ver com déficit público ou estouro do teto orçamentário – os quais, supostamente, levariam o governo a injetar mais dinheiro na economia. De fato, se a esse aumento de dinheiro na economia for seguido de uma produção maior, não há nenhuma razão para que o pão e outros produtos subam de preços, pois sua oferta no mercado estará equilibrada com a demanda.
Na realidade, diante de um processo inflacionário, as duas correntes principais da Economia – monetarismo e desenvolvimentismo -, sugerem políticas radicalmente diferentes. Os monetaristas propõem enxugar a quantidade de moeda em circulação, para diminuir a pressão dos preços de bens e serviços no mercado. Já os desenvolvimentistas sugerem exatamente o oposto: propõem o aumento da produção, para aumentar a oferta e contrabalançar a pressão da demanda.
É evidente que é preferível a segunda alternativa, do ponto de vista da Economia Política – uma economia que leva em conta os interesses reais da Nação, e não do mercado financeiro especulativo. Ela estimula a produção e o emprego. Do outro lado estão os interesses dos monetaristas, preocupados, sobretudo, em especular com papeis sem vínculos com a produção. Na medida em que estes dominam, no Brasil, a maior parte da mídia – como é o caso de jornalistas como Tralli -, o resultado inevitável é estagnação.
O “arcabouço fiscal” proposto por Fernando Haddad está longe de basear-se em princípios de boa política econômica. Ao contrário. Em grande parte, está baseado no anacrônico monetarismo e nas políticas fiscais que ele recomenda. Entretanto, tendo em vista a composição conservadora do Congresso Nacional, não adianta sonhar com uma política mais progressista. O melhor que temos que fazer é esperar a prova da verdade. Veremos o que acontece e, se o plano fracassar, buscaremos alternativas.
É uma pena porque o país tem todas as possibilidades de fazer uma política de desenvolvimento acelerado sustentável, de tipo chinês. Não temos dívida externa, e, ao contrário, temos superávit comercial com o exterior. Dispomos de amplos recursos energéticos, de mão de obra abundante, de uma base científica e tecnológica criativa em nossas universidades e institutos de pesquisa, e um setor financeiro sofisticado, apto a financiar empreendimentos confiáveis, fora da linha especulativa.
Se não nos desenvolvemos aceleradamente é porque não queremos. Ou porque o Congresso Nacional, dominado por neoliberais, não quer. Estamos, infelizmente, fazendo uma política econômica suicida – ou austericida, como se diz -, incapaz de superar nossas reais insuficiências materiais imediatas e de infraestrutura. É o que chamo de “economia da especulação”, contra a “economia de produção”. Com isso só ampliamos o desemprego, concentramos renda e aumentamos as diferenças sociais.
É curioso como Tralli, trabalhando na Globo, não prestou atenção numa entrevista à Globonews dada há poucos dias por uma professora indiana da universidade norte-americana de Massachussets. Ela fez um verdadeiro libelo contra a política econômica brasileira. Segundo ela, os economistas estrangeiros não conseguem entender como o Brasil, com todas as suas potencialidades, faz coisas inexplicáveis como superávits primários, em lugar de destinar os recursos daí derivados para investimento.