Por Fernando Augusto Fernandes
A Lei 14.532 trouxe uma nova tipificação de injúria racial, alterando a lei que já punia o racismo (Lei 7.716/89). A lei traz a tipificação segundo a qual injuriar alguém em razão de sua raça, etnia ou procedência nacional passa a ser crime punido com pena de 2 a 5 anos, com um aumento de pena da metade, se é cometido por duas ou mais pessoas (artigo 2-A e seu parágrafo único).
Este artigo busca mostrar porque a nova lei é necessária. Por que criar um agravante quando propagado por “meio de comunicação social, de rede mundial de computadores”, acrescido no artigo 20, da lei de 1989, pelo novo § 2º? E outro agravante para o crime quando cometido em “locais destinados a prática desportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público” (§ 2º-A)?
Longe do discurso punitivista, sabendo que o Direito Penal sozinho não resolve as questões sociais, e que em conjunto com os efeitos econômicos dessa seara devem repercutir consequências cíveis, não é possível deixar de ver que as sanções legais são importantes para ajudar a sociedade em determinadas mudanças.
Tenho repetido que a proibição de fumar em locais fechados ajudou a formar uma consciência em relação ao cigarro. E quando isso ocorreu, falavam na ofensa à “liberdade de fumar”. O mesmo ocorreu em relação à obrigação do uso de cinto de segurança e capacete, contra a qual se falava em “liberdade”. E se esquece que alguém acidentado vai parar na rede de hospitais públicos gastando verbas que pertencem a todos. Nessa esteira, podemos verificar o fato agravado de quem invoca o “direito de não se vacinar”, como se fosse “liberdade” o fato de se constituir agente propagador da doença e ainda gastar verbas do sistema de saúde.
Portanto, a nova lei, ao tipificar e agravar penas, tenta retirar a possibilidade de suspensão condicional do processo (permitido aos crimes com penas mínimas de 1ano ou menos, conforme artigo 89, Lei 9.099/95), mas continua possível pela Lei 13.694/20, no acordo de não persecução penal, já que a pena mínima é inferior a 4 anos, e igualmente admite pena alternativa, de restrição a direitos, se aplicada não acima de 4 anos, o agente não for reincidente em crime doloso, e a culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade do agente indicarem que a substituição seja possível, na forma do artigo 44 do CP.
A lei anterior já trazia uma importante consequência da condenação, que é “a perda do cargo ou função pública, para o servidor público, e a suspensão do funcionamento do estabelecimento particular por prazo não superior a três meses” (Artigo 16,da Lei 7.716/89).
É fundamental, ainda, tratarmos dos crimes contra o Estado Democrático de Direito neste contexto histórico, além da terrível agressão que sofreu o advogado Cristiano Zanin, que foi o principal responsável pela defesa do presidente Lula. Agressão que teve rápida manifestação de apoio de várias entidades como a OAB Federal, OAB-RJ, o IAB Nacional e entidades como a ABJD, Sacerj, Abracrim e o grupo Prerrogativas.
Os crimes de racismo e injúria racial se procedem por ação penal pública incondicionada. Ou seja, o Ministério Público tem o dever de agir independentemente de representação ou mesmo da falta de desejo da vítima. Isso porque a ofensa não atinge somente a vítima específica, mas toda a sociedade, que não pode aceitar tal comportamento.
Da mesma forma, a ofensa a Zanin não foi somente a ele. Todos os cidadãos foram ofendidos e, em especial, todos os advogados. A ofensa foi também a mim! O advogado exerce um múnus público (Artigo 2º, § 2º Lei 8.906/94) e “no seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social” (§ 1º).
A ofensa que sofreu o advogado está inscrita no artigo 140 do Código Penal como injúria, agravada pelo fato de ter sido divulgada na rede social (§ 2º. Se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena) saindo a pena de 1 a 6 meses para, portanto, 3 a 18 meses.
Evidente que é possível, ainda, que se constitua o crime de violência política do artigo 359-P “Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional“, cuja pena vai de 3 a 6 meses, com a problemática de se interpretar o título do capítulo, já que está inscrito “no processo eleitoral”. E pode ser inscrito como uma continuidade delitiva da tentativa de golpe de Estado, que teve seu cume no dia 8 de janeiro, mas se encontra em andamento desde muito antes do processo eleitoral, e continua em andamento, incluindo a campanha permanente das fake news pelas milícias digitais, o que poderia gerar a acusação em coautoria do artigo 359-M do Código Penal.
Assim, é fundamental a busca por legislações seguras que deem conta de reprimir tais atitudes. Escrevi sobre isso na ConJur quando do assassinato do guarda civil Marcelo Arruda e voltei ao assunto recentemente em Aviltamento e terrorismo semântico e jurídico.
A tipificação aos crimes de ódio e até a Lei Antiterrorismo (Lei 13.260/16) ficaram ligadas a “xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”. Esquecemos as questões políticas. Não podemos continuar admitindo essa escalada de injúrias, calúnias e difamações por razões políticas, nem podemos tratar de casos isolados sem entender que estão todos conectados com um ataque a democracia.
A sugestão parece evidente. Os crimes contra o Estado Democrático de Direito devem ter como consequência evidente a perda de cargos públicos e a impossibilidade de participar de concursos. Os crimes de ódio precisam ter como consequência a perda de cargo dos crimes de injúria racial. E ainda incluir como previsão criminosa a intolerância política. É preciso, também, vetar a possibilidade de suspensão condicional de processo e acordo de não persecução penal nos crimes de ódio e contra a democracia.
Quanto às ofensas a todos nós na pessoa do advogado Zanin, o artigo 141 prevê, como agravante, o cometimento contra o presidente da República, mas também contra “funcionário público, em razão de sua função”, fora presidentes da Câmara, Senado e STF. Esses crimes se procedem somente mediante queixa e no caso dos funcionários públicos mediante representação.
O advogado, eleito pela Constituição no seu artigo 133 como essencial à justiça, precisa ter igualado nesse artigo a mesma estatura dos funcionários públicos (!) quando ofendido em razão de sua função, podendo representar e sendo agravante. Sendo funcionário público, o ofensor precisa perder o cargo.
Mas em todo e qualquer caso, sendo a razão da ofensa a intolerância política, o crime deve seguir a mesma lógica do racismo e da injúria racial, no sentido de ser ação pública incondicionada.
O desagravo não é só em relação do advogado, que foi coroado na sua atuação em defesa do presidente Lula com a concessão da ordem de Habeas Corpus de suspeição do não-juiz Sergio Moro, mas um desagravo à advocacia e à cidadania. Esse desagravo, que já se iniciou e também não depende de pedido, de representação ou aceitação, já foi aprovado pelo Conselho Federal da OAB, mas é importante a mudarmos a lei! Sobral dizia que justiça não se agradece, se aceita. Porque ela é uma forma de se restabelecimento.
Originalmente publicado em CONJUR
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