“Quem tentar interferir deve saber que a resposta da Rússia será imediata e levará a consequências como nunca antes experimentado na história”. O aviso de Vladimir Putin, após a Rússia iniciar operações militares na Ucrânia, nesta quinta, 24, acendeu o sinal de alerta: o planeta está preparado para uma ruptura de ordem internacional com Rússia e China como aliados de um lado e União Européia e Estados Unidos de outro?
“Não corremos risco pelo menos nos moldes das primeira e segunda guerras”, diz Vicente Ferraro, pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da USP. “O efeito catastrófico de um conflito assim inibe essa possibilidade”.
O cientista político falou com o DCM sobre a crise na Ucrânia e, obvio, seus efeitos no Brasil: o primeiro será o aumento dos combustíveis com a disparada dos preços do petroleo. Confira:
Corremos o risco de uma nova guerra mundial?
Vicente Ferraro: Não. Pelo menos não nos moldes da Primeira e Segunda Guerra Mundial.
O efeito catastrófico de uma guerra entre potências nucleares inibe a possibilidade de um conflito direto.
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Ao que tudo indica, caminhamos para um cenário análogo ao da Guerra Fria, com estratégias de contenção mútua, alianças militares, conflitos em países periféricos, uma possível corrida armamentista e instrumentos de guerra híbrida (choque de narrativas, desinformação, uso de tecnologias e táticas de desestabilização de regimes).
Contudo, no atual contexto há mais potências envolvidas e a disputa ideológica não é muito definida, sendo moldada em parte por interesses pragmáticos: no lugar da competição entre capitalismo e socialismo, temos uma competição entre o liberalismo político e diferentes tipos de regimes – por exemplo Rússia, China e Irã que se unem não por afinidade ideológica, mas por terem um adversário em comum.
Quem ganha e quem perde?
A crise aprofunda a polarização entre o Ocidente (EUA, União Europeia, Canadá, Austrália e Japão) de um lado e a Rússia e a China do outro.
Trump teve uma relação conflituosa com alguns países aliados, o que dificultou a tomada de ações coletivas entre os países do Ocidente.
A mudança de governo nos EUA e as tensões com a Rússia e a China estão levando a uma rápida reaproximação.
China e Rússia vêm se aproximando desde os anos 2000, com uma atuação conjunta no Conselho de Segurança da ONU e com a criação de plataformas para a discussão de interesses comuns, como os BRICS e a Organização para a Cooperação de Xangai.
A crescente pressão que ambos sofrem do Ocidente reforçou esse acercamento.
Hoje há dois cenários de conflito entre os pólos geopolíticos.
O primeiro é o Mar do Sul da China. O discurso enfático de Xi Jinping em retomar o controle sobre Taiwan, aliado do Ocidente, é um dos principais pontos de atrito na região.
EUA, Austrália e Reino Unido formaram o pacto militar AUKUS, enquanto a Rússia e a China vêm realizando exercícios militares em conjunto.
O segundo é o Leste Europeu.
Desde o fim da Guerra Fria a Rússia contesta o alargamento da OTAN em direção às suas fronteiras. Putin adotou um posicionamento combativo ao Ocidente, questionando a ajuda militar que a aliança militar vem dando à Ucrânia e a perspectiva de que o país possa vir a se tornar membro.
A China declarou apoio às intenções russas de conter o avanço da aliança.
Qual é o objetivo de cada país?
As motivações da Rússia no posicionamento combativo em relação à Ucrânia podem ser sintetizadas em cinco fatores: ressentimento e preocupação com a expansão da OTAN para próximo de suas fronteiras desde o fim da Guerra fria; a preocupação com movimentos que contestaram a sua hegemonia na região (as “revoluções coloridas”) a partir dos anos 2000, derrubaram regimes aliados e contaram com a ajuda indireta do Ocidente; a apreensão com a perda de influência na política ucraniana após a crise de 2014 e a resiliência do presidente ucraniano em negociar; a percepção de Putin quanto a ilegitimidade das fronteiras atuais da Ucrânia e até mesmo da sua existência como estado independente; e, por fim, a instrumentalização do conflito na política interna – conflitos externos podem estimular a popularidade de Putin e a legitimidade de seu regime, como ocorreu em 2014.
Por sua vez, a Europa, de maneira genérica, teme que se não for dada uma resposta enfática a Putin, pode-se abrir um precedente para futuras expansões, sobretudo por pretextos étnicos, o que já ocorreu em outros períodos da história do continente.
Países do Leste, como por exemplo a Letônia e Estônia, com minorias étnicas russas significativas, estão entre os que mais manifestam preocupação e demandam uma maior presença da OTAN.
Assim como na América Latina, pelo histórico intervencionista estadunidense, há animosidades em relação aos EUA; em alguns países do Leste Europeu, por razões históricas, há uma percepção da Rússia como ameaça.
Finalmente, entre as motivações dos EUA estão: a manutenção de sua hegemonia na Europa, contestada pela Rússia e pelo advento de uma ordem multipolar; a sinalização a aliados, principalmente no Leste (como nos países Bálticos e na Polônia), de que é capaz de garantir segurança coletiva; a contenção da Rússia e dissuasão a novas alterações de fronteiras na região; e a formação de um “cordão sanitário” próximo às fronteiras russas, idealizado por geopolíticos e estrategistas militares.
A visão eurocentrista no predomínio das políticas externas está com os dias contados?
Sim. No fim da Guerra Fria, analistas como Francis Fukuyama chegaram a afirmar que havíamos chegado ao “fim da história”, ou seja, o liberalismo político, a democracia representativa e o modelo capitalista teriam supostamente se firmado como um objetivo universal a ser almejado em todas as partes.
Também preconizou-se a consolidação de uma ordem mundial unipolar, com a hegemonia norte-americana. Passados 30 anos, vemos um cenário completamente diferente.
A liderança estadunidense é cada vez mais contestada e presenciamos uma ordem multipolar; há uma dificuldade cada vez maior do Ocidente conseguir fazer valer seus objetivos geopolíticos em diferentes partes do globo; a ascensão da China mostrou que o liberalismo político e econômico não são os únicos caminhos para o desenvolvimento econômico, embora o país tenha abraçado em parte o capitalismo; o restabelecimento da Rússia como potência militar alterou o quadro geopolítico de diferentes regiões, como o Leste Europeu e o Oriente Médio.
No plano ideológico, a Rússia também se posiciona como defensora de “valores conservadores” (por exemplo, no papel da família e em questões de gênero) frente ao que seria, no seu entendimento, o “liberalismo político ocidental decadente”.
Diante da crescente polarização geopolítica e falta de consenso entre as grandes potências, organismos internacionais, como a ONU, vêem-se cada vez mais paralisados.
Qual o papel da China no conflito?
A China é fundamental para que a Rússia consiga diminuir o impacto das sanções econômicas que já foram e serão impostas pelo Ocidente e para que o país tenha maior poder de barganha em disputas militares e geopolíticas.
Um possível cenário seria a atuação coordenada da Rússia sobre a Ucrânia e da China sobre Taiwan, o que deixaria o Ocidente com pouca margem de manobra.
Vale destacar que a interdependência econômica por muito tempo foi utilizada pelo Ocidente como instrumento de pressão para países adotarem modelos políticos e econômicos condizentes com seus interesses.
Com a ascensão da China e a sua presença cada vez mais acentuada na balança comercial de países do Sul Global, o Ocidente vem diminuindo o potencial de pressão.
De que forma o conflito interfere no Brasil?
Em primeiro lugar, podemos mencionar o impacto econômico.
A crise tem pressionado o preço do gás e do petróleo no mercado internacional. A gasolina no Brasil já está com um preço elevado, com um considerável efeito inflacionário – uma subida nos preços pode aprofundar ainda mais a inflação.
Em segundo, embora a diplomacia brasileira tradicionalmente tenha se mantido neutra na questão ucraniana, seja por ser um problema distante da nossa realidade ou por termos relações amistosas com a Rússia nos BRICS, uma invasão russa de larga escala na Ucrânia pode mudar esse cenário.
O Ocidente e, em particular, os EUA podem aumentar a pressão para que o Brasil se posicione. Além disso, é uma incógnita se o Ocidente teria instrumentos para pressionar países como o Brasil a aderir a eventuais sanções.
Finalmente, ainda que o Brasil não venha em nenhum momento a adotar sanções, empresas brasileiras podem ser coagidas indiretamente a aderirem.
Sanções têm efeitos colaterais, como ocorreu no caso cubano.
Por exemplo, empresas que negociam com países sancionados podem ser proibidas de comercializar no mercado estadunidense e europeu, o que certamente teria um impacto no agronegócio brasileiro.
Cabe mencionar que o Brasil exporta açúcar, café, soja e carne para a Rússia e importa, principalmente, fertilizantes e seus insumos.