Jessé Souza: “Não existe nada mais importante para entender o Brasil do que o ódio ao escravo antes e ao pobre hoje”

Atualizado em 13 de dezembro de 2018 às 13:31

Publicado originalmente no Sul 21

Por Débora Fogliatto

“De onde vem isso que a gente está passando agora? Isso para mim não é algo que começou ontem, há cinco ou há 15 anos. É algo que já comemora quase 100 anos, a mesma história. É o processo de dominação política de uma elite que conseguiu se assenhorar do pensamento simbólico sobre a sociedade brasileira. E ela contamina a direita e grande parte da esquerda”.

Foi dessa maneira direta que o sociólogo Jessé Souza, um dos mais importantes pensadores brasileiros da atualidade, começou sua fala em Porto Alegre nesta quarta-feira (12). Diante de centenas de pessoas que lotaram o auditório da Fetrafi-RS, ele ministrou a palestra “Brasil: Raízes sócio-históricas e e econômicas, conjuntura atual e perspectivas futuras”.  No evento, realizado pelo Sindicato dos Bancários, ele realizou um resgate histórico da relação entre as classes no Brasil e analisou a forma como ela afeta o país até hoje. “Para a elite se reproduzir no tempo, o desafio dela é retirar a inteligência e manipular”, constatou.

Essa elite veio se constituindo desde o período da escravidão e tinha como projeto de poder ter o Estado a sua disposição. “Todos os países que admiramos no mundo foram construídos a partir da educação para a maioria da população. Já aqui se mantém a escravidão pela falta de acesso à educação. [A escravidão] Não é mais apenas racial, embora é claro que haja marcas de raça e classe no país. O desprezo aos escravos é o núcleo do escravismo, e o sistema econômico tem que juntar a exploração com a humilhação, o desprezo, o ódio ao outro”, destacou Jessé.

É por isso que ele considera que os brasileiros são os “filhos do escravismo”, apontando que esse sistema não existia em Portugal e, portanto, não se pode tratar dele como uma herança dos portugueses colonizadores: “O caldo cultural brasileiro é o escravismo, a humilhação. O núcleo do Brasil é isso, núcleo que vai estar em todas as relações que a gente trava. A elite, que se localizava em São Paulo, montou a partir de 1930, com a ajuda de intelectuais, uma concepção de sociedade destinada a repetir item por item o escravismo, sob outras condições: colocar uma escola que vai servir a 20%, que é a classe média, com uma diferença abismal em relação às classes populares”.

Segundo o sociólogo, a sociedade brasileira é “montada no ódio ao pobre”. “Não existe nada mais importante para entender o Brasil do que o ódio ao escravo antes e o ódio ao pobre hoje em dia”, constatou. Essa elite, conforme aponta Jessé, tem o monopólio das ideias e, com isso, comanda os sentimentos e opiniões da sociedade em geral. “As ideias não ficam nos livros, nas estantes, vão se ligar aos interesses econômicos e políticos de certas elites e vão dominar nosso comportamento. É por isso que uma elite de meia dúzia consegue dominar, é pelas ideias”, destacou.

“Então antes de qualquer ação política é necessário estabelecer a luta das ideias. Sem a coragem de enfrentar a tradição, esse país vai continuar tendo essa miséria e essa violência doentia que a gente tem até hoje”, constatou. Historicamente, ele conta que a elite paulistana da década de 1930 mencionada anteriormente, “perde” com a chegada ao poder de Getúlio Vargas, e a partir daí começa a pensar em “como criar a ideia do que é o Brasil”. Até então, o país não existia como concepção, mas sim era apenas um “amontoado de regiões”.

A ideia criada à época pelas elites é a que se mantém até hoje, de acordo com ele. “Primeiro, não se critica a escravidão, e quando você não critica o que você é, você não sabe o que é. Vai se montar uma história, uma interpretação, pelos senhores de escravos. A escravidão vai ser a forma como a família, a Justiça vai ser montada entre nós. E a elite precisa manipular o povo, humilhando, dizendo que somos um povinho indolente, preguiçoso, ladrão”, disse.

Corrupção e empobrecimento

Para Jessé, a ideia de corrupção como existe atualmente só é possível a partir de 1789, na França,  porque “o povo só pode ser dono dos bens do Estado quando é concebido como origem de todo o poder”. E a elite se aproveita de uma ideia de patrimonalismo, de que apenas o Estado rouba os bens públicos, e não o Mercado. “Isso é bom para essa elite, a ideia e que os proprietários não roubam, eles dão emprego, fazem trabalho honesto. Cria-se o Estado como bode expiatório”, avalia.

Dessa forma, no Brasil, se estigmatiza o Estado e a política, colocando a corrupção como “a origem de todos os nossos males”, o que ele considera uma “balela”. Mencionando o papel da imprensa nesse processo, Jessé mencionou a Operação Lava-Jato, da qual ele é um conhecido crítico. “A Lava-Jato em cinco anos blinda o sistema financeiro, que é quem rouba de forma legalizada, blinda o poder Judiciário, os meios de comunicação, e escolhe de acordo com a conjuntura os seus alvos. Os candidatos de esquerda não podem elogiar a Lava-Jato”, colocou, sob aplausos.

Com a Lava-Jato, joga-se luz para os esquemas de corrupção, deixando de lado o empobrecimento da população. “A população não sabe, porque tem uma mídia canalha, mas a esquerda não pode se aliar a isso. A Lava-Jato recuperou menos de $ 1 bilhão de dólares. Vamos só ver a quantidade de sonegação de impostos de meia-dúzia, são $ 500 bilhões de dólares. Sem contar uma dívida pública, que está cheia de falcatrua privada, roubalheira, por isso que ninguém audita”, citou, mencionando ainda as taxas de juros cobradas no país. “Isso é o roubo, o assalto que é imperceptível”, definiu.

Retomando a ideia de que a escravidão está no núcleo do país, citou governos que foram derrubados, como Getúlio, Jango e Dilma Rousseff. “O que derruba governo nesse país não é a corrupção, então o que é? O que Getúlio, Jango, Lula e Dilma fizeram para terem provocados golpe de Estado? Diminuir as distâncias entre as classes, esse é o crime”, afirmou. Ele resume dessa forma o que chama de aliança anti-popular, que existe desde 1930, entre a elite, que se apropria do poder econômico, e a classe média, que tem  o conhecimento.

“O capitalismo não é só dinheiro, é conhecimento também. E a classe que vai se apropriar do conhecimento considerado legítimo é a classe média. Classe não é renda, é reprodução de privilégios. As classes dominantes se apropriaram dos dois grandes capitais do mundo moderno, dinheiro e conhecimento. Mas a classe média  usa a corrupção [como desculpa] porque não pode dizer que vai ser contra Lula e Dilma pelo aumento de pobres nas universidades, pelos pobres usarem as mesmas roupas que eles. Isso que faz a classe média sair na rua”, analisa. Essa ideia da corrupção como a origem dos males do país está atrelada diretamente com o isolamento do trabalhador e com a ideologia meritocrática que diz que “se você não se deu bem, a culpa é sua”, de acordo com Jessé.

Como exemplo, ele citou pesquisa feita para seu livro A Classe Média no Espelho, no qual entrevistou engenheiros que se tornaram motoristas de Uber.  “Perguntava para eles quem era o culpado e colocavam a culpa no [ex-governador Sérgio] Cabral, na política. Não estou aqui defendendo Cabral, ele desviou muita grana, mas isso não desemprega populações”, analisou, mencionando também os royalties da Petrobras, que foi atacada por esse “capitalismo baseado na fraude”. “Somos atacados por dizer que o petróleo ficaria aqui, queriam criminalizar a Petrobras. ‘Como os políticos são corruptos, vamos entregar a Petrobras para os estrangeiros honestos’. Não se imbeciliza um povo inteiro à toa, você quer tirar vantagem disso”, afirmou.

Divisão e neofascismo

As entrevistas foram realizadas alguns meses antes das eleições, momento em que “não se tinha ideia do tamanho do fascismo entre nós”, segundo Jessé. As pessoas que melhoraram de vida no início dos anos 2000 e que a partir de 2015 se viram em situações piores, estão com raiva e frustradas, conforme ele observou. “Obviamente tem uma imprensa dizendo o tempo todo que é a corrupção, que devemos criminalizar a política. E tem do outro lado a pregação do mercado, que também está em todo o lugar, dizendo que ele tem todas as chances, basta que queira, e que se fracassa a culpa é dele”.

Nesse cenário, esses integrantes da classe média frustrada tem duas opções: ou aceitam sua derrota, seu fracasso, “o que significa cair muitas vezes no alcoolismo, na depressão”; ou podem recanalizar essa agressão num bode expiatório externo socialmente aceito: o PT, a política. “Essa é a origem do neofascismo para mim, esse drama individual”, resume.

Além de estudar a classe média, Jessé relata que anteriormente também já estudou os “muito pobres”, e com isso aprendeu que a elite precisa dividir os oprimidos, já que estes são mais numerosos. “Se tiverem unidos, não tem como oprimir. Os muito pobres são antes de tudo humilhados e subjugados por ideias que foram criadas para oprimi-los. E existe a oposição entre os pobres, do pobre honesto versus o delinquente — que é o bandido no caso do homem e a prostituta no caso da mulher. E toda família pobre tem essa divisão, e aí um se sente superior ao outro”, descreve.

Nessa divisão entre os pobres, quando um se torna policial e mata o seu “irmão” por considerar ele um bandido, e dessa forma se sente superior, é onde mora “a força do fascismo”. Ele mencionou, nesse âmbito, o extermínio da população pobre realizado pela polícia, “apoiado pela classe média e pela elite, que aplaude o massacre dos pobres, se regozija disso”.

Essa divisão também ocorre no espectro político dentro da esquerda, quando “se pega uma luta justa das minorias perseguidas” e a isola da luta por redistribuição de renda, comparou Jessé. “E se vende isso como emancipação, essa é a pauta progressista do capitalismo financeiro. Ele não quer distribuir renda, distribuir poder, mas ele pode dizer ‘você pode ser homem, mulher, branco, negro, gay ou hétero, eu quero explorar você em condições iguais’. E funcionou, assim se separa o que é inseparável”, explicou.