João Ubaldo foi-se. O último grande escritor brasileiro, romancista de vocação, capaz de reunir qualidade literária, reconhecimento internacional, apoio crítico e popularidade — e principalmente o carisma de uma personalidade literária que já não existe mais. Da sua geração, ele foi o melhor. E não há uma nova geração de escritores brasileiros com essa magnitude.
O baiano João Ubaldo deu, de certa forma, continuidade à excelência literária regional de Jorge Amado, que o adotou, desde muito cedo, como pupilo. Não por acaso. Ubaldo esbanjou talento precoce, sólida formação e um humor inigualável. Era capaz de piadas e histórias engraçadas por horas a fio, pontuadas por suas risadas colossais, que se faziam ouvir à distância. E seduzia sua plateia, fossem apenas amigos ou literatos de alto calibre.
Embora tenha estreado na literatura aos 22 anos, o sucesso veio com o instigante romance “Sargento Getúlio”, uma obra madura de um escritor de 34 anos, que lhe valeu o Prêmio Jabuti de autor revelação em 1974. Até hoje é considerado um de seus melhores livros, talvez devido à linguagem irônica que produzia com grande facilidade, talvez pelo retrato de uma “brasilidade” pouco explorada, ou por sua maestria regionalista — ou provavelmente por tudo isso.
Ubaldo foi professor de Ciências Políticas na Alemanha e fez seu mestrado nos EUA. Tinha uma característica notável: boa parte de sua obra foi traduzida para o inglês por ele mesmo, tarefa que lhe tomava um bom tempo e da qual, algumas vezes, reclamava e se dizia arrependido. Como foi o caso de “Viva o Povo Brasileiro”, uma saga brasileira de mais de 400 páginas, linguagem rebuscada e plena de sutilezas.
Sua popularidade, no entanto, foi consolidada com “O Sorriso do Lagarto”, uma história com pitadas fantásticas que acabou virando série da TV Globo. Essa é uma das características de sua prosa: recriava a realidade brasileira com grande intensidade, buscando recursos tanto no realismo como no fantástico, fundindo cenários e personagens. Talvez tenha sido o escritor brasileiro que mais se aproximou da voluptuosidade literária dos grandes nomes do realismo fantástico latino-americano. A eles, Ubaldo não devia nada.
Não se pode dizer que tenha sido um escritor notadamente produtivo. Sua bibliografia não contém mais de dez títulos, alguns obscuros. Mas exerceu seu ofício de escritor de modo exemplar, produzindo crônicas na grande imprensa, participando de antologias e divulgando a qualidade literária brasileira mundo afora. Em 1995, publicou “Um brasileiro em Berlim”, uma pérola na forma de depoimento baseado no ano em que passou na capital alemã a convite de uma instituição local.
Assumidamente alcóolatra, Ubaldo conseguiu largar a bebida nos últimos tempos, o que talvez tenha lhe produzido uma certa melancolia. Casou-se três vezes. E embora estivesse morando no Rio há mais de dez anos, Ubaldo era um típico baiano — na literatura, no modo de falar, na graça sensual de suas ideias malucas. Uma figura. Graças a ele, a bucólica ilha de Itaparica, próxima a Salvador, foi eternizada, já que foi o cenário de muitas de suas narrativas.
Foi um baiano “grandioso” por não se ater às temáticas literárias regionais e produzir uma literatura universal, ainda que com raízes locais. Pôde ser tão popular a ponto de ser tema de escola de samba e, ao mesmo tempo, circunspecto o suficiente para ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, o que ocorreu em 1993.
É fácil dizer que a literatura brasileira perdeu um de seus maiores escritores de todos os tempos. O difícil é aceitar que autores de seu quilate provavelmente não surgirão tão cedo.