“Juiz não pode ter desejo”, diz Dias Toffoli sobre o papel do Judiciário na democracia

Atualizado em 9 de fevereiro de 2020 às 10:07
Dias Toffoli Foto: Nelson Jr/ STF

Publicado originalmente no site Consultor Jurídico (ConJur)

POR MÁRCIO CHAER, MAURÍCIO CARDOSO, DANILO VITAL, ANDRÉ BOSELLI E LILIAN MATSUURA

De acordo com a Constituição Federal, os Poderes da República devem ser harmônicos e independentes. Não importa quem esteja no comando. Por isso, o diálogo é necessário. Criminalizar essa relação “é um absurdo”, na opinião do ministro presidente do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli.

A questão se coloca no contexto dos questionamentos sobre o papel de algodão entre cristais a que se dispôs o principal nome do Judiciário, para desgosto dos descontentes com o chefe do Executivo do momento, Jair Bolsonaro.

“A harmonia independe de quem esteja à frente do Supremo, da Câmara dos Deputados, do Senado ou da Presidência da República. Quem está nesses locais está legitimado pela sua respectiva eleição. Isso tudo legitima institucionalmente o Estado brasileiro, e essas lideranças têm que sentar, porque no passado o que se tinha de ideia era que, se um presidente do Supremo conversasse com o presidente da República, era crime. A ideia de criminalizar a política é um absurdo”, explica Dias Toffoli, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.

Com esse discurso, o magistrado minimiza a aposta feita ao propor, em um cenário político muito polarizado, um novo pacto nacional com a missão de “destravar o Brasil”. Presidente do Supremo desde setembro de 2018, Toffoli manteve a interlocução com Palácio do Planalto. Por outro lado, nega que essa proximidade incorra em uma espécie de controle prévio de constitucionalidade, algo que não existe no ordenamento jurídico brasileiro e que, sem dúvida, aumentaria a governabilidade.

“O diálogo facilita a gestão do Estado como um todo, para que as leis saiam mais bem feitas, mais seguras, que as decisões judiciais tenham previsibilidade, segurança jurídica para investimentos, para as pessoas fazerem os seus contratos e que, depois, o governo possa governar de uma maneira mais segura, sem medo de ser gestor. Hoje, um dos grandes problemas é o medo que se tem de tomar decisões. E o país precisa tomar decisões todos os dias”, explica.

O ministro Dias Toffoli deu sua entrevista na sede da ConJur, em São Paulo, na quarta-feira do dia 29 de janeiro, a última semana antes da abertura do ano judicial. Falou também sobre governabilidade e custo da Justiça no Brasil, defendeu o regime de decisões colegiadas do STF e, ao tratar do inquérito em andamento na corte, recolocou o sentido da expressão fake news.

No decorrer dos próximos dias a ConJur vai divulgar, em vídeo, trechos da conversa com o presidente do Supremo.

Leia, abaixo, alguns trechos da entrevista

ConJur — Em um cenário político muito polarizado, o senhor e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mantiveram a interlocução com o Palácio do Planalto e firmaram um novo Pacto Republicano. Não foi uma aposta alta demais?
Dias Toffoli —
 Os poderes, pelo comando Constitucional, têm que ser harmônicos e independentes. O Executivo cuida do presente, o Legislativo, do futuro, e o Judiciário, do passado. Nessas três funções, a harmonia independe de quem esteja à frente do Supremo, da Câmara, do Senado ou da Presidência da República. Quem está nesses locais está legitimado pela sua respectiva eleição. Isso tudo legitima institucionalmente o Estado brasileiro, e essas lideranças têm que sentar, porque no passado, o que que se tinha de ideia era que, se um presidente do Supremo conversasse com o presidente da República, era crime. A ideia de criminalizar a política é um absurdo. Ora, para um país dar certo, as instituições têm que dialogar, e o Estado tem que dialogar com a sociedade. O Estado tem que promover o bem-estar social. E é papel dos poderes ter como interesse último a realização daquilo que está no artigo terceiro da nossa Constituição. Entre eles, diminuir as desigualdades sociais, regionais, acabar com os preconceitos de qualquer espécie.

ConJur — O cientista político Rogério Arantes criou a expressão “judicialismo de coalizão” para se referir a esse momento político de harmonia de poderes. A crítica é que o senhor estaria incorrendo em uma espécie de controle prévio de constitucionalidade, que é algo que não existe no nosso ordenamento. O senhor concorda com essa afirmação?
Dias Toffoli —
 Não. É absolutamente incorreta essa observação, porque, quando você fala em pacto, ele já foi feito no passado. Por exemplo, grande parte das leis que permitiram a “lava jato” existir foram frutos de pactos republicanos. A Lei da Transparência, a legislação que transformou a organização criminosa em crime — até 2013 só existia o crime de quadrilha —, a colaboração premiada de uma maneira mais elaborada, tudo isso são leis que foram produtos de diálogos entre Judiciário, Legislativo e Executivo. Tanto está equivocada essa análise, que veja quantas foram as decisões do Supremo em 2019 que glosaram atos, sejam decretos, sejam leis, sancionadas pelo governo Bolsonaro? Foram várias!

ConJur – Isso independe do pacto firmado.
Dias Toffoli —
 O diálogo não interfere na independência entre os poderes. O diálogo facilita a gestão do Estado como um todo, para que as leis saiam mais bem feitas, mais seguras, as decisões judiciais tenham previsibilidade, segurança jurídica para investimentos, para as pessoas fazerem os seus contratos e que, depois, o governo possa governar de uma maneira mais segura, sem medo de ser gestor. Hoje, um dos grandes problemas é o medo que se tem de tomar decisões. E o país precisa tomar decisões todos os dias. Felizmente, o Brasil é um país que não tem os mesmos problemas que tinha há 30 anos. Não é que não existam, mas são pontuais. Então, esses problemas todos o Brasil superou, a sociedade passou à frente.

ConJur — Um novo pacto com novos objetivos, portanto.
Dias Toffoli —
 Quais são os problemas do Brasil hoje? Gerar emprego, gerar desenvolvimento, crescimento social, crescimento econômico, melhoria da educação. Esses objetivos da nação brasileira hoje não seriam possíveis se você não tivesse, no passado, resolvido o problema da democracia, da inflação, uma moeda confiável, se nós não tivéssemos resolvido um controle fiscal dos entes da federação, o problema de controle econômico entre os poderes, a emenda do teto de gastos. Nossos problemas vão sendo resolvidos. Eu sou muito otimista em relação ao Brasil. E mais, com a institucionalidade reforçada pelo fato de todos os espectros da política terem governado o Brasil desde 1988. Isso é muito significativo. Isso mostra um país culturalmente avançado e desenvolvido.

ConJur — O Supremo deve se preocupar com a governabilidade do país?
Dias Toffoli —
 Uma corte constitucional tem exatamente essa função: ser árbitra, de ser um poder que tenha garantia da vitaliciedade ou de mandato para poder garantir a governabilidade, sim. É isso que faz uma Corte Constitucional ter sentido de existir. No Brasil, quando cai o poder moderador do Império, o que diz Emilia Viotti? O que diz Raymundo Faoro? O que dizem vários estudiosos? O Supremo Tribunal Federal foi criado para ser o herdeiro do poder moderador. Quando eu falo poder moderador, não é o poder que vai adiante, que vai dizer o futuro. Esse poder moderador, como já escreveu José Afonso da Silva em 1985, quando ele falava da Constituinte que iria ocorrer a partir de 1986, é um poder que tem que ser prudente. Ele não pode ser um poder invasivo.

ConJur — O Brasil viveu nos anos recentes cambalhotas sucessivas e intensas com a mudança de governantes, a derrubada de presidentes da República, da Câmara, de lideranças no Senado. O senhor se torna uma autoridade nacional no meio disso. Isso é inédito no Brasil? Um movimento de seguidos revertérios?
Dias Toffoli
  O Brasil é um país extremamente complexo. O nosso primeiro imperador abdicou em 1831. O segundo imperador foi deposto. O primeiro presidente da República, Deodoro da Fonseca, renunciou. Governar o Brasil não é fácil, porque é um país que não tem elite nacional. Nós não temos um país com um pensamento unificado. É a divergência e a complexidade. Daí a necessidade de se ter sabedoria e ciência da História para compreender as razões históricas da unidade nacional, as divergências e compreender porque que esse país se manteve unido. Governar o Brasil é muito difícil.

ConJur — E a isso se devem esses revertérios?
Dias Toffoli —
 A Constituição tem demonstrado que trouxe uma institucionalidade muito forte. Dou o seguinte exemplo: de 1988 para cá, tanto o centro governou, inicialmente quando promulgada, com o presidente Sarney; a centro-direita, com a direita do presidente Collor; depois o centro volta novamente com Itamar, após o impeachment de Collor; depois vem a centro-direita-esquerda mais amplificado de Fernando Henrique Cardoso, quando o país começa uma política de desestatização, que é mais liberalismo, com a política mais social, o início dos programas sociais; depois vem o governo Lula, mais centro-esquerda; vem o governo Dilma, que é um governo à la Brizola, intervencionista e que se mostrou um desastre; e depois vem o governo Michel Temer, que retoma ao centro com políticas liberalizantes para desfazer o intervencionismo estatal; e aí vem a sociedade e elege Jair Bolsonaro presidente da República, um governo de direita com apoio da extrema-direita. E nós já temos um ano de governo Jair Bolsonaro. Ou seja, o Brasil foi governado por todos os espectros políticos. Isso é muito bom. Isso é democracia, é alternância de poder. É a sociedade nas suas várias visões, plúrimas, governando o país.

ConJur — Durante a maior parte desse período que o senhor mencionou, o Brasil só tinha Poder Executivo. Judiciário e Legislativo eram coadjuvantes da décima fileira. O senhor concorda que é a partir da década de 1980 que o Brasil passa a ter um Judiciário?
Dias Toffoli —
 Sem dúvida. A partir da Constituição de 1988 a expectativa era de direitos, liberdade, garantias, redemocratização e a um Estado que fosse mais igualitário, garantindo aos cidadãos e às pessoas uma maior igualdade social, econômica e de liberdade. Então se cria o garantismo de que o Judiciário deve ser aquele poder que vai arbitrar esses problemas. Para isso, o que é necessário fazer? Aumentar o número de ações, de acesso ao Judiciário. Todas essas ampliações de acesso. Isso e a construção de um Ministério Público independente, algo que não existe em nenhum outro lugar do mundo, porque o nosso cuida não só da ação penal e de investigar crimes, mas das defesas de meio ambiente, minorias, patrimônio cultural e artístico.

ConJur — Ou seja, as funções foram ampliadas.
Dias Toffoli —
 Esse acesso ao Ministério Público e à Justiça foram fundamentais, porque o juiz não age de ofício, não acorda de manhã e diz: “Vou julgar isso”. Para julgar, é preciso ter uma demanda. A Constituição de 88 criou canais de pacificação social. Por isso que o problema do Brasil é diferente do problema do Chile. Eu não gosto de comparar países, porque isso pode criar problemas diplomáticos. Mas é um dado concreto: o Brasil tem uma medicina de acesso universal, outros países não têm; nós temos uma educação de acesso universal. Houve a criação de cotas para as universidades públicas. Então nós temos um Estado que funciona. E a grande característica do Brasil é que a democracia mostrou firmeza nesses 31 anos da Constituição de 1988.

ConJur — De que forma?
Dias Toffoli —
 Os nossos problemas de hoje não são os problemas de ontem. O grande problema do Brasil antes da Constituição de 1988 era a democracia, era a liberdade de expressão, havia censura. Quem que não se lembra do [filme do diretor francês Jean-Luc Gordard] “Je Vous Salue, Marie“, que, ainda no governo Sarney, já um governo de um civil, foi censurado pelo ministro da Justiça? A Constituição de 1988 trouxe um pacto social. Trouxe um custo econômico, não há dúvida, mas conseguiu arbitrar um país extremamente complexo dando sua Justiça universal. Muitos falam do custo da Justiça no Brasil. “Ah, o Judiciário no Brasil é muito caro.” Mas é de graça. Vamos e venhamos, todo mundo que já teve acesso à Justiça sabe que os custos são mínimos. Vai comparar com o Reino Unido, vai comparar com os Estados Unidos.

ConJur — Japão também.
Dias Toffoli
  No Japão as pessoas não vão à Justiça porque não têm dinheiro para pagar. Seja para pagar custas do sistema, seja para pagar um advogado. E nós temos uma estrutura de Defensoria Pública, que é quem melhor lê o Judiciário, porque o faz pelo mais pobre, por aquele que não teve concretizado o seu direito pelas políticas públicas, mas o tem por um magistrado, por um juiz. Isso custa. Isso tem um preço. E a sociedade tem que saber que esse é um preço digno para a gente manter uma sociedade com 210 milhões de habitantes, com diferenças sociais entre as pessoas, econômicas entre as regiões do país, e harmonizar todo esse universo. Isso não é fácil. A constituição de 88 conseguiu, e a Justiça brasileira vem arbitrando os conflitos, mantendo esse pacto fundante.

ConJur — Qual sua opinião sobre a suspensão da suspensão do juiz das garantias?
Dias Toffoli —
 Isso faz parte do colegiado. Não vejo isso como um problema. Isso faz parte das diferenças de opiniões. Mas, na nossa gestão, aumentamos em 22% as decisões colegiadas. Não é um índice pequeno. Foram, no ano passado, mais de 17 mil decisões colegiadas. Nenhuma suprema corte do mundo julga isso. E aí é inevitável que você tenha decisões individuais. O que é importante? Na pauta, colocar essas decisões para depois serem decididas pelo conjunto dos 11 ministros.

ConJur — O senhor fala em colegiado e em previsibilidade e segurança jurídica, mas se tem que o Supremo é formado por 11 ilhas. É uma expressão até da lavra do próprio ministro Sepúlveda Pertence.
Dias Toffoli —
 É, mas é uma falácia isso. Como é que são 11 ilhas com 17 mil decisões colegiadas?

ConJur — A crítica é que a própria decisão colegiada não é colegiada: é um agregado de 11 votos díspares sem uma ratio decidendi por trás.
Dias Toffoli —
 Isso é a nossa cultura de julgamento há cem anos. Para você ter a transparência da decisão nós só sabemos o que cada qual vai dizer no momento do julgamento. Triste são locais em que os juízes se sentam em salas, como dizem os latinos, cerradas, e lá eles decidem e depois trazem a público a sua decisão final sem nenhuma transparência. Eu prefiro o nosso sistema. É mais transparente

ConJur — Mais transparente, mas talvez a previsibilidade e a segurança jurídica fiquem prejudicadas.
Dias Toffoli —
 Não, não ficam. A relação é construída de uma maneira mais democrática e mais transparente. Eu acho que isso é importante. E elas se tornam mais sólidas. Elas não têm interferências que você não fique sabendo. São absolutamente transparentes. E isso é verdade absoluta.

ConJur — Em um determinado momento, percebeu-se que havia a fabricação de notícias e mesmo produção de documentos ilegítimos até para direcionar certas decisões do Supremo, às vezes até para emparedar ministros. Foi aberto um inquérito. O inquérito não teve nenhum resultado prático?
Dias Toffoli —
 O inquérito tem tido resultados específicos. Eu não acompanho diretamente porque há um relator, eu não interfiro no trabalho do colega. O relator é o ministro Alexandre de Moraes. Conforme cada caso é investigado, ele termina um relatório e encaminha à autoridade competente.

Evidentemente que o maior fator desse inquérito foi exatamente inibir aquilo que era uma geração de instabilidade institucional no início de 2019. Da noite para o dia, mais de 70% das fake news que rodavam as redes sociais desapareceram.

É exatamente como se retirasse um computador da tomada. Aquilo não era real. Era um computador ligado na tomada. Quando se fala em fake news, a tradução não é apropriada. Na verdade, a palavra fake no inglês tem o sentido de fraudulento. No português, tem sentido de falso.

Você pode dar uma notícia falsa sem nenhuma maldade, por algum equívoco de apuração. O que nós temos que combater é a notícia fraudulenta.

ConJur — Como o senhor interpreta o termo?
Dias Toffoli — 
A palavra fake tem a noção de dolo. A notícia fraudulenta que nós estamos combatendo é aquilo que quer desmoralizar instituições. Tenho sempre citado Hannah Arendt quando ela faz aquela obra sensacional, que é “Verdade e Política“.

Ela escreveu em 1968, depois que ela fez o livro “Eichmann em Jerusalém“, sobre o julgamento, e quem traduziu bem a ideia no Brasil foi Ulysses Guimarães: “sua excelência, o fato”.

ConJur — Qual é a conclusão?
Dias Toffoli — 
A política não pode ditar a verdade factual. Quem escreve a verdade factual é a história. “Sua excelência, o fato”. Não adianta a política querer combater a verdade factual. Quando a política quer combater a verdade factual, ela vira totalitarismo, autoritarismo.

Não adianta a pessoa acreditar que a terra é plana. Porque a terra é redonda. O fato está aí. Não dá para transformar os fatos.

ConJur — Mas a imprensa, no que diz respeito ao Supremo, respeita os fatos?
Dias Toffoli —
 O que nós vivemos hoje é exatamente uma tentativa de superar o argumento pelo sentimento. Isso pode ser uma sedução que atinja até o magistrado, por isso que eu tenho reiterado ao longo da minha gestão no CNJ que o juiz não pode ter desejos.

O juiz não tem vontade. O juiz cumpre os acordos. Os acordos feitos pelo mundo político, e a Constituição, e as leis. E ele é o garante disso, de acordo com os fatos.