Publicado originalmente por PONTE:
Por Caê Vasconcelos
Na magistratura há 19 anos, André Luiz Nicolitt sabe da importância que é ser um dos pouquíssimos juízes negros no Brasil. Em uma decisão histórica, assinada no último sábado (5/9), o juiz de Direito do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro), além de conceder liberdade provisória ao músico negro Luiz Carlos Justino, 23 anos, questionou o racismo por trás da prisão do violoncelista.
“Como a foto de alguém primário, de bons antecedentes, sem qualquer passagem policial vai integrar álbuns de fotografias em sede policial como suspeito?”, questionou o juiz na decisão, acrescentando a resposta em outra pergunta “um jovem negro, violoncelista, que nunca teve passagem pela polícia, inspiraria ‘desconfiança’ para constar em um álbum?”.
Mestre em Direito pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e doutor em Direito pela UCP (Universidade Católica Portuguesa), Nicolitt entende que a sua maior representatividade é ser professor universitário. É um dos poucos professores negros que os alunos têm como espelho na UFF (Universidade Federal Fluminense) e no Programa de Pós-graduação da UniFG (Faculdade de Guanambi).
Em entrevista exclusiva à Ponte, Nicolitt denunciou a seletividade penal do sistema de justiça brasileiro, apontou as motivações para a ineficácia dos reconhecimentos, pessoais e fotográficos, que encarceram tantos jovens negros inocentes, e falou sobre representatividade.
“Mais importante do que ter um juiz negro é ter um professor universitário negro, um médico negro, um autor de livros negro. Ver um juiz preto, um professor universitário preto, dá uma esperança naquele garoto que não tem a esperança de ser outra coisa na vida. Agora lugares que sempre foram ocupados pelas elites brancas do país podem ser ocupados por negros”, aponta.
Para Nicolitt, seria arrogância do Judiciário não assumir que é uma instituição racista. “Quando a gente fala de racismo estrutural, falamos de algo que está na base, na construção de todas as instituições, de todos os grupos sociais. Sem exceções. O Judiciário sabe que esse é um problema a ser enfrentado. Era muito pior quando a gente vivia ainda sob o mito da democracia racial, que não existia racismo. O primeiro passo para mudar é dar conta do problema, depois podemos começar a ver possibilidades de superação”.
Leia a entrevista:
Ponte – Na decisão judicial, você destacou dois pontos muito fundamentais: o reconhecimento por foto e o fato do músico Luiz Carlos Justino ter sido abordado sem ter nenhuma passagem pela polícia, que isso gerou “desconfiança”. Como a gente muda essa realidade?
André Nicolitt – Foi construído a imagem do negro como uma imagem do crime. A pele negra é a pele do crime, como diz o [Baco] Exu do Blues em seu rap. É isso que se quer. Como isso foi construído? Foi construído ao longo de muitos séculos, principalmente nas tensões dos debates abolicionistas. Com o fim [do debate] da abolição da escravatura essa imagem do negro, violento e estuprador, foi construída no mundo inteiro.
No cinema americano temos o mito do negro estuprador, que aparece logo após a abolição. Cria-se esse imaginário do negro como violento. Para destruir isso é muito difícil porque é algo construído há muito tempo. O mais contraditório dessa história é que as vidas mais vulneráveis, mais matáveis são as vidas negras, são os corpos negros.
Os negros que morrem mais de forma violenta, são os negros que mais são presos. Era o negro que deveria ter esse medo porque somos nós que morremos mais e somos vítima dessa violência toda. Há um silenciamento de sucesso que a ideia do negro estar associada da violência.
Isso condiciona as agências do Estado para estarem sempre colocando o negro sob vigilância. Vigia-se favelas e comunidades. Por exemplo, os números de fuzis apreendidos em todas as favelas do Rio raramente vão chegar aos números de fuzis apreendidos na Barra de Tijuca.
Se você para pra pensar, a quantidade da Comarca em que eu trabalho, que é a de São Gonçalo, a quantidade de cocaína, que se apreendeu ali durante um ano, não vai chegar a quantidade de cocaína apreendida no avião da FAB (Força Aérea Brasileira) que seria transportada para o exterior. Há uma ideia de que o tráfico e as armas estão nas favelas, nas comunidades, nas periferias, mas isso é só uma ilusão. Sobretudo são nesses locais que a vigilância se concentra.
Ponte – Um juiz branco ou uma juíza branca teria escrito uma decisão tão potente como essa para libertar o Luiz Justino, como você fez no sábado passado?
André – O que a gente tem debatido muito no cenário jurídico hoje é exatamente a questão das epistemologias, ou seja, o olhar da mulher sobre determinados fatos, o olhar do negro, o olhar do pobre. Isso tudo traz novas formas de olhar o Direito. No campo do que a gente chama de teoria da justiça, muito se discute sobre uma pergunta: o que é justiça? Muita gente responde essa pergunta dizendo que justiça é algo subjetivo, que cada um tem o seu conceito de justiça. O que é justo para mim pode não ser justo para você. Isso é o que chamamos de relativismo.
Quando você vai estudar efetivamente isso, você tem um filósofo belga chamado Chaim Perelman, que diz que justiça em termos abstratos seria igualdade. O Chaim também diz que o problema da justiça hoje é no campo concreto. Por que eu estou falando tudo isso? Se em termos abstratos entendemos que justiça é igualdade, em termos concretos o que é igual ou desigual?
Isso é algo que varia de acordo com a nossa cultura, com as nossas raízes, com a nossa origem, com a nossa instrução e com as nossas ideologias. A ideia de que mulheres e homens são iguais, que pretos e brancos são iguais, pode variar muito a partir do olhar e do corte ideológico de quem está vendo. As sensibilidades sobre o concreto da justiça são variáveis e, aí sim, a origem de cada um vai marcar os conceitos e as formas de encarar os problemas da justiça no campo concreto.
A gente pode pensar que: se no campo abstrato a justiça é igualdade, porque existem tantas decisões díspares? No campo concreto nosso olhar sobre o mundo é sempre marcado por um certo subjetivismo. Então, é óbvio que a mulher vai ter uma sensibilidade diversa para determinados problemas, o negro de igual modo. Por isso essas questões identitárias e das diversidades sexuais são tão importantes na sociedade contemporânea.
Se uma pessoa é parada, abordada na rua, verifica-se que ela não tem documentos e ela é levada para a delegacia, e lá se verifica que tem um mandado de prisão contra ela. Dificilmente você vai abordar na rua uma pessoa branca e mais dificilmente vai levá-la para a delegacia se ela estiver sem documento. Se uma pessoa branca tiver um mandado de prisão contra ela, em muitas vezes não vai ser cumprido.
Ponte – Isso funciona muito nas prisões de tráfico de drogas, né? Em que a mídia tem um papel fundamental nessa criminalização, dizendo que a pessoa branca não é traficante.
André – Com certeza. A questão do tráfico é a maior rede de captura dos jovens negros. Hoje temos praticamente 2/3 das prisões são em decorrência de tráfico de drogas, com pequenas quantidades e sem uso de violência, envolvendo jovens periféricos. As prisões estão recheadas de pequenos traficantes que nada mais são do que jovens negros. Quando se discute o encarceramento, não há como não fazer uma discussão sem estar associada a uma discussão ligada a própria criminalização das drogas.
Ponte – E é isso que prende no Brasil: ou o tráfico ou os roubos, ou é a guerra às drogas ou o patrimônio, que sempre tem como alvo o jovem negro e periférico.
André – Esses são os critérios seletivos do sistema penal, como eles selecionam os seus inimigos. Agora isso está um pouco diferente porque há um processo de criminalização da política e isso levou inúmeros políticos e empresários para as prisões. Por que a gente fala de seletividade penal? Mesmo nesse segmento, você vê que as intervenções penais acabam sendo seletivas. Vemos pessoas que praticam as mesmas coisas e são apanhadas e outras que não são apanhadas porque as agências não operam do mesmo modo.
Ponte – Voltando ao reconhecimento, apesar de termos um artigo específico no Código de Processo Penal, sabemos que as pessoas são reconhecidas de maneira irregular, muitas até por fotos no WhatsApp. Como você enxerga essa fragilidade nos reconhecimentos?
André – O [artigo] 226 já é uma legislação muito antiga, que não dá uma boa base para que a gente faça um reconhecimento. Essa temática em outros países é discutida de forma muito mais profunda. Não temos no Brasil nenhuma regência sobre reconhecimento por foto. O 226 não fala de reconhecimento por foto, fala de reconhecimento de pessoas.
Temos dois problemas. O reconhecimento de pessoas verdadeiramente, colocando a pessoa a ser reconhecida ao lado de outras pessoas parecidas, a pessoa que vai reconhecer estando ali presencialmente. Isso se já fosse feito nas formas adequadas já não seria o melhor dos mundos. Mas nem isso se faz, porque as pessoas não observam a liturgia do artigo.
O segundo ponto é que se faz um reconhecimento fotográfico que, no direito brasileiro, não tem nenhuma regra definindo como deveria ser feito. Se tem que colocar mais pessoas, como esse álbum começa, como esse álbum é formado, se as pessoas que vão reconhecer fazem pessoalmente. Nada disso está delineado na lei. Então temos um problema gigantesco, mas as pessoas não têm a dimensão.
Além da ausência de uma legislação, temos o mito da fé, que é uma crença desmedida dessa técnica. A técnica não é legalmente orquestrada, as regras mínimas que tem sobre essa técnica não são observadas e para piorar tudo isso deposita-se uma confiabilidade que não se pode prestar na prova. A vítima falou que reconhece e acaba, dali a pessoa vai presa e vai ser condenada.
Ponte – Além desse reconhecimento, que em muitos casos é a única prova para um inquérito policial e até para uma condenação, vemos o peso da palavra do policial, em que as pessoas têm os vídeos, testemunhas, mas não tem o mesmo peso. A palavra do policial deveria bastar para se condenar uma pessoa?
André – Os estudos apontam no sentido que precisamos saber qual a quantidade e qualidade das provas para que a gente possa conduzir alguém ao cárcere. Para além desse problema, temos outros processos problemáticos, como a chamada dissonância cognitiva. Você tem um indício inicial de que aquele sujeito cometeu um crime e, a partir daquilo, cria um processo mental que, mesmo diante de evidências muito maiores, você será incapaz de perceber que ele não é o culpado.
Temos um despreparo dos operadores, de modo geral, que são incapazes de estudar algo para além do cotidiano. Quando falamos em reconhecimento estamos falando de psicologia social, psicologia aplicada, de saberes que fogem da questão jurídica.
Vemos uma carência de formação geral em temas como teoria da justiça, psicologia social, direitos humanos somado ao número enorme de trabalho e uma sociedade que clama por respostas à violência. Com isso, cria-se uma produção em larga escala no Judiciário que não consegue examinar cada caso com o cuidado, atenção e humanidade que cada processo que contém uma pessoa dentro deve ser examinado.
Ponte – Podemos dizer que temos um sistema de justiça racista? Como mudamos essa realidade? As cotas seriam uma alternativa?
André – Quando a gente fala de racismo estrutural, falamos de algo que está na base, na construção de todas as instituições, de todos os grupos sociais. Sem exceções. Não temos igrejas que possuem dimensões sem racismo, não temos empresas sem racismo, parlamento sem racismo, escolas e jornais sem racismo, a polícia. Seria muita arrogância imaginar que o Judiciário seria diferente, ele reproduz o que está na base.
O que temos hoje é que esse debate chegou no sistema de Justiça. O Judiciário sabe que esse é um problema a ser enfrentado. Era muito pior quando a gente vivia ainda sob o mito da democracia racial, que não existia racismo. O primeiro passo para mudar é dar conta do problema, depois podemos começar a ver possibilidades de superação.
Mas é um problema difícil. Vivemos em uma sociedade que teve 350 anos de escravidão. Só há 130 anos as coisas foram transformadas em sujeitos. Até que isso mude o imaginário e habite no coração das pessoas, que ainda nos veem como mercadorias, como coisas, leva tempo. Não é uma mudança breve, é uma mudança dolorosa.
Ponte – Como é ser um magistrado negro em um país que é estruturalmente racista? Quais foram os desafios para chegar no lugar que você está hoje?
André – Ser negro é sempre um problema, mas ser magistrado negro não é um problema mais porque o poder embranquece. Você quando exerce um poder acaba sendo bem amparado por certos privilégios. Não posso comparar a minha situação com a de outros negros, mas isso não quer dizer que a minha situação seja igual de todos os juízes brancos.
O que eu observo é que ser um juiz negro me traz uma percepção de que o poder é algo que acaba embranquecendo. As pessoas acabam vendo menos a sua cor da pele por duas razões: às vezes pela importância da representatividade e em muitos casos as pessoas são tão racistas que chegam ao ponto da negação, querem te ver como branco porque não querem tributar a um magistrado negro. Machado de Assis passou por isso, ele era um escritor negro e foi visto e considerado como branco. Há esse processo duplo.
Ponte – E como foi a sua trajetória no direito?
André – Eu não tinha cotas raciais na minha época. O que isso me traz de diferente? Na faculdade eu era um negro no meio de pessoas brancas. Éramos em quatro estudantes negros. Isso te coloca em uma situação peculiar. Na magistratura somos 14% de pretos e pardos. De pretos declarados pretos somos 1,4%. Sem cotas continuaremos sendo 1,4. Vai sempre faltar, por mais que a gente, por um milagre, uma potencialidade, saiamos do nosso não-lugar e cheguemos a um lugar seremos sempre solitários. São as políticas afirmativas que vão fazer com que essa representatividade aumente, que não haja essa distinção tão grande entre negros e brancos.
Ponte – Qual a importância das ações afirmativas?
André – Nenhuma lei, nem a abolição, tenha sido tão importante para a população negra como as leis de cotas raciais. Eu tenho muita dúvida se a abolição foi abolição ou abandono. Abriram-se as senzalas para tirar os negros e colocar nos cárceres, através do processo de criminalização após a abolição, da capoeira e da vadiagem.
As senzalas passaram das mãos dos senhores para ser uma falta de privação de liberdade por parte do Estado. Quando vemos a lei de cotas, que é algo promocional, que entupiu as universidades de negros, isso é algo absolutamente extraordinário. Isso serve para mostrar que a meritocracia, que o cara não ia conseguir acompanhar não existe.
As pesquisas demonstram que os cotistas têm um desempenho tão bom e, não raro, melhor do que os não cotistas. Na universidade que dou aulas verifico isso. Óbvio que o meu desejo é que isso seja superado, que não precisemos mais recorrer a esses recursos compensatórios. Esse é o primeiro passo de um projeto muito maior, que é o de construir uma sociedade livre.
Ponte – Você não teve essa representatividade na sua vida, mas hoje você é uma. O cinema, por meio do filme Pantera Negra, mostrou muito isso como é esse impacto. Como a representatividade impacta na vida das crianças negras crescerem e verem que há juízes negros como você?
André – Mais importante do que ter um juiz negro é ter um professor universitário negro, um médico negro, um autor de livros negro. Eu tenho sentido muito isso. Meus alunos na universidade pararam para observar isso, porque tenho muitos alunos negros. Ao mesmo tempo temos poucos professores negros no direito. Eles me falam isso, que por terem poucos professores negros, é muito importante ter o meu trabalho.
Isso foi como quando eu vi Barack Obama sendo presidente dos EUA, com aquela frase “sim, eu posso”. Isso é mostrar que preto pode ter presidente e mexe muito com a autoestima das crianças e dos jovens. Ver um juiz preto, um professor universitário preto, dá uma esperança naquele garoto que não tem a esperança de ser outra coisa na vida. Agora lugares que sempre foram ocupados pelas elites brancas do país podem ser ocupados por negros.
Ponte – Como compensamos uma prisão injusta?
André – A reparação financeira é fundamental, mas ela será sempre insuficiente. Hoje eu estava lendo um artigo da [jornalista] Flávia Oliveira sobre o Caetano Veloso em que ela lembra de uma frase, de Rogério Duarte [designer, músico e escritor morto em 2016], que diz que “quando a gente é preso, é preso pra sempre”. Essa marca de preso nunca mais sai da sua vida. Você sai da prisão, mas a prisão não sai de você.
Você sempre vai guardar os seus medos e as suas lembranças. Isso estamos falando de pessoas que saem e reconstroem as suas vidas de modo fascinante. Se para essas pessoas a prisão nunca sai delas, imagina para um jovem pobre e periférico que é marcado pelo cárcere, ainda que absolvido. Sem contar que a simples passagem pelo sistema prisional é um demérito para agregar na desvalor maior de conduta criminosa, mesmo que ela tenha sido absolvido. As marcas psicológicas da memória e o estigma que a prisão traz é algo insuperável.