Por Moisés Mendes
O Brasil estava à espera da chance de espancar uma celebridade negra poderosa. Deveria ser um espancamento coletivo, decidido no voto, que tivesse o poder de um massacre.
O Brasil não consegue derrubar Bolsonaro, porque não tem forças para reagir ao fascismo, mas lavou a alma esfolando Karol Conká. São as compensações com seu conforto enganoso.
A Globo produziu o espetáculo dos tempos bolsonarianos. Escolheu a dedo alguém que complicasse a associação automática da imagem de uma mulher negra à ideia de afirmação de negritude, feminismo e militância antirracismo.
O Brasil não massacrou um negro pobre, com o perfil dos que a polícia mata todos os dias, às dezenas, nos morros e nas periferias. Refugou uma negra linda, poderosa, bissexual, influente, rica.
Malharam uma figura dos nossos tempos, a artista e influenciadora com milhões de seguidores.
E aí vem a pergunta incômoda: malharam por ter se revelado violenta, tóxica, destrutiva, abusiva, falsa, preconceituosa, manipuladora e vilã, ou malharam porque, antes, ela é uma negra?
A Globo estava em busca de um impacto que provocasse a maior rejeição a um participante do programa. Karol foi pulverizada com 99,17% dos votos.
Havia ficado antigo e batido para a Globo marcar presença no debate da afirmação de diferenças consagradas e exploradas pela mídia e pelo marketing, mas comportadas demais.
Era preciso explorar as contradições e a complexidade das lutas identitárias e mostrar que nesses contingentes quase sempre associados às esquerdas não há só mocinhos e mocinhas.
Novelas de TV, romances (a literatura está investindo nesse filão), filmes e séries devem ter mais do que negros, gays, trans, defensores da maconha e do aborto e feministas.
A Globo precisava fugir dos clichês idealizados pelo identitarismo. Karol não é um acaso, foi escolhida a dedo. São muitas as informações de que sua vida real está muito próxima da personagem que representou no programa.
A Globo não queria ser repetitiva com as mensagens edificantes do gay assertivo e intelectualizado Jean Wyllys ou da médica e humanista negra Thelma Assis. A protagonista tinha que ser uma barraqueira com o poder de Karol Conká.
Karol é a figura dos nossos tempos gasosos. As pessoas dizem: mas nunca ouvi falar. Não ouviram porque ainda vivem na realidade analógica e envelhecida dos artistas e das estrelas do entretenimento da Globo.
As grandes bolhas do século 20 nem sempre têm dutos com as bolhas gigantescas dos espaços e das falas de gente com a representatividade de Karol Conká.
A Globo teve de ir buscar no mundo digital dos artistas influenciadores o contraponto impositivo, forte, autoritário de uma artista que tem seguidores. Quem ainda tem fãs à moda antiga, como Fiuk, que se acomode, abatido, num cantinho desse cenário.
O Big Brother começou com 20 participantes, nove deles negros. Saíram Nego Di, que quase foi uma Karol, Lucas, que foi embora porque não aguentou, e a própria Karol. Os outros são os outros, sem a imprevisibilidade politicamente incorreta desses dois.
É certo que a Globo, pouco antes do desfecho, investirá de novo num final que passe coisas boas. Mas aí o estrago já terá sido feito. A Globo disse ao Brasil: parem com essa frescura de que só os brancos são pessoas cruéis com os negros.
Logo depois de ser expulsa, ao vivo, Karol admitiu: “Eu me perdi dentro de mim. Nunca imaginei que eu fosse dar uma surtada”.
Enquanto ela surtava na jaula, o que pode ser sua desculpa, o Brasil se preparava para esfolar a negra que todos poderiam odiar sem culpas.
Enquanto isso, Thelma Assis, a vencedora do Big Brother do ano passado, voltava a ser uma médica negra invisível no inferno de Manaus, no maior pronto-socorro do Hospital 28 de Agosto, onde salva vítimas da covid-19.