A jovem gestante assassinada ontem pela Polícia Militar do Rio de Janeiro entrou para a estatística mais dilacerante da nossa realidade de absurdos: um jovem negro morto a cada vinte e três minutos.
Dessa vez, foi em dose dupla. Destruíram a família inteira de só vez. Kathlen Romeu estava grávida de seu primeiro filho. O Estado necropolítico – em que os corpos pretos são sempre alvo – não poupa mulheres, crianças, velhos. Muitas vezes nem mesmo os negros ricos são poupados.
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Se você digitar “polícia confunde” no Google, ele retornará milhares de resultados com matérias sobre chacinas policiais em favelas e periferias brasileiras, ou sobre jovens inocentes mortos por “bala perdida” – a bala perdida sempre encontra corpos pretos.
Ou a Polícia anda mesmo muito confusa ou nossos jornalistas por alguma razão não conseguem parar de chamar genocídio de “confusão” e chacina de “operação policial”.
É preciso responsabilizar a Polícia Militar (e falar sobre desmilitarização), é preciso falar sobre racismo institucional, mas já passou da hora de falarmos, também, sobre a responsabilidade da imprensa na manutenção de uma cultura que naturaliza e mascara a violência policial – que é perpetuada sobretudo contra jovens negros.
“O Estado brasileiro não está em guerra contra as drogas. Está, desde sua formação, servindo ao extermínio da população preta e periférica”, escreveu o ator Icaro Silva, mais uma vez, cirúrgico.
O genocídio da população negra é um projeto que data da própria construção do Brasil. Desculpem aos que consideram Bolsonaro nosso único problema – spoiler: não é – mas o genocídio da juventude preta é, evidentemente, anterior ao bolsonarismo (embora sua ascenção tenha agravado nociva e consideravelmente a questão).
Na crista da onda da agenda bolsonarista, a polícia carioca – a pior do Brasil seguida de perto pela PM de Salvador, alguém tem argumentos pra discordar? – mata 16% a mais desde a eleição de Jair. E 16% sobre uma estatística que já é altíssima – temos a polícia que mais mata no mundo – significa milhares, talvez milhões de famílias destruídas.
“Daqui a cem anos nossos netos e bisnetos olharão perplexos para o que estamos vivendo e tentarão entender os motivos que nos fazem parecer anestesiados diante a avalanche de absurdos”, protestou Elza Soares, sempre precisa, no Twitter.
Eu já me adiantei, Mulher do fim do mundo, e me pergunto no tempo presente: por quê? Por que nossa revolta não se transforma em ação coletiva contra o que nos assola? O que exatamente nesse estado de morte nos paralisa? Por que, mesmo sentindo a dor de Kathlen e do bebê em seu ventre, só conseguimos olhar apático para mais um jovem negro assassinado?
Se fosse uma mulher branca grávida morta por “bala perdida” na Zona Sul, esse país teria parado em protestos e os nomes dos policiais assassinos estampariam todas as manchetes.
Vidas negras importam pra quem?