As mensagens privadas de procuradores do Paraná e do juiz Sergio Moro, que vieram a público inicialmente pela série de reportagens conhecidas sob o nome Vaza Jato, e em seguida foram obtidas e autenticadas pela Polícia Federal, revelam os bastidores sinistros da operação que levou à destruição de grandes empresas nacionais, ao golpe de 2016, e à prisão ilegal do ex-presidente Lula.
Hoje não há mais dúvidas, entre juristas sérios, de que a operação foi manipulada, do início ao fim, por delações forjadas que serviram à construção de narrativas previamente construídas por agentes do Estado que, ao invés de servir ao interesse público, cumpriam uma agenda política.
O DCM teve acesso a mensagens inéditas que ajudam a montar o quebra-cabeças dessa conspirata macabra que produziu uma das maiores crises políticas da história brasileira, jogando milhões de brasileiros no desemprego e na miséria, e submetendo nossa democracia a um governo de extrema-direita, com inclinações abertamente fascistas.
São diálogos analisados pela Polícia Federal no âmbito da Operação Spoofing.
Você pode ler mais reportagens desta série aqui: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8.
As matérias anteriores revelaram que um dos delatores centrais da Lava Jato, Pedro Barusco, teve seu depoimento “reescrito” por ordem do próprio coordenador da Lava Jato no Ministério Público, Deltan Dallagnol.
Em seguida, a narrativa de Barusco é imposta, também por determinação explícita de Dallagnol, a outros delatores. O objetivo era explicitamente político: manter o foco no PT e no ex-presidente Lula.
Para isso, a Lava Jato, com auxílio luxuoso da mídia, manteve em segundo plano que todas as provas obtidas contra Barusco, e depois contra Duque, remetiam a um tempo em que ambos já estavam afastados da Petrobras.
Barusco era diretor de Operações da Sete Brasil, empresa privada, que tinha, entre seus sócios, um grupo de investidores que reunia fundos de pensão, bancos, investidores nacionais e internacionais, além da Petrobras.
Outro personagem central à Lava Jato, e que serviu especialmente à perseguição política do ex-presidente Lula, foi o ex-ministro Antonio Palocci.
Preso em 26 de agosto de 2016, Palocci foi visto pelos procuradores liderados por Dallagnol e pelo juiz Sergio Moro, como uma arma capaz de ferir o alvo mais cobiçado da operação: Lula.
Para isso, a Lava Jato repetiria o método que havia dado certo com outros delatores: intimidação e tortura psicológica do réu, pressão sobre juízes de segunda instância para evitar qualquer benefício penal, e, sobretudo, chantagem judicial (no caso de não colaborar, condenações em cascata; se colaborasse, liberdade quase imediata).
No dia 25 de abril de 2017, Laura Tessler, uma das procuradoras mais leais a Dallagnol, menciona a estratégia para forçar Palocci a se tornar delator. Era preciso convencer o ex-ministro da Fazenda no governo Lula a trocar de advogado.
Até então, Palocci era assistido por José Roberto Batochio, um dos mais renomados juristas do país, mas que era abertamente hostil ao recurso da colaboração premiada.
“Battochio ainda está na defesa dele [Palocci]”, lamenta Tessler num dos grupos de Telegram dos procuradores de Curitiba. E continua: “Estava aqui pensando se era o caso de já ir preparando a terceira denúncia do Palocci. Talvez isso o anime um pouco mais…”
Em seguida, Tessler reproduz um texto de Sergio Laura, também procurador do MPF, no qual ele teoriza sobre a importância dos “fatores subjetivos” dos procuradores para o sucesso da Lava Jato:
“Refiro-me mesmo à idiossincrasia dos que estiveram lá até agora à frente das investigações, seus ideais, preferências, grau de conhecimento e experiência, vocação, etc. Foram eles essenciais para que aqueles dois fatores objetivos dessem resultado? Não tenho a mínima dúvida que sim.”
A transcrição do texto de Sergio Lauria, que é inédito, segue ao final da reportagem.
As observações de Lauria tem um significado bem diferente hoje, à luz das revelações de tantos crimes cometidos pelos procuradores da Lava Jato.
Ele diz ainda – numa observação repleta de involuntária ironia – que o resultado das investigações “dependerá e muito da sensibilidade de quem estiver no comando”.
Em 3 de maio de 2017, um dos procuradores de Curitiba (não identificado), volta a falar sobre Palocci. A mensagem é inédita.
“Agora temos que armar trincheira em torno da prisão de Palocci. E não devemos adiantar qualquer acordo com ele, pois iria ser muito caro para nós. Além disso, é hora de conversar no TRF para adiantar as apelações”.
Estávamos em maio e a Lava Jato queria aumentar a pressão sobre Palocci. O ex-ministro tinha dado um depoimento em abril do mesmo ano que fora decepcionante para a operação, porque não incriminava nem o PT nem o ex-presidente Lula.
Isso não servia à Lava Jato, que apenas aceitava delações que se ajustassem à narrativa central da operação, envolvendo necessariamente partidos políticos e a cúpula dos governos Lula e Dilma.
A pressão deu resultado. Palocci troca de advogado, contratando Adriano Bretas, de Curitiba, um velho conhecido dos procuradores da Lava Jato. A indústria da delação premiada é outro assunto, aliás, que ainda precisa ser melhor investigado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Semanas depois da mensagem falando em “armar trincheira”, e um pouco antes da sentença de Sergio Moro, que seria assinada em 26 de junho de 2017, Palocci dá outro depoimento, completamente diferente do primeiro, com acusações pesadas a Lula e ao PT.
Esse último depoimento de Palocci viria a público em setembro de 2017, a tempo de pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF), que analisava por aqueles dias a aceitação de uma pesadíssima denúncia feita pelo procurador-geral da república, Rodrigo Janot, contra a cúpula do Partido dos Trabalhadores, incluindo Lula, Dilma, Guido Mantega, Gleisi Hoffmann, entre outros.
Essa denúncia, como todas as outras da Lava Jato envolvendo Lula, seria arquivada pelo STF, poucos anos depois, por absoluta falta de provas.
Mas estamos em 2017, e a Lava Jato trabalhava contra o tempo para aniquilar politicamente o ex-presidente Lula, que tinha iniciado uma caravana pelo país, num trabalho de pré-campanha para as eleições presidenciais de 2018.
Em janeiro de 2018, com base nas delações forjadas pela Lava Jato, e na sentença viciada de Sergio Moro, o TRF-4 condenaria Lula em segunda instância, prejudicando seus direitos políticos.
Em abril de 2018, Lula seria preso.
E a uma semana do primeiro turno das eleições, o então juiz Sergio Moro liberaria mais trechos da delação de Palocci, com mais mentiras contra Lula.
Essa última delação de Palocci seria anulada em agosto de 2020, após o STF receber um relatório da Polícia Federal onde se conclui que ela não apresentava nenhuma prova contra o ex-presidente.
A delação de Palocci vazada por Moro em outubro de 2018 ajudaria a alimentar a onda de ódio e ressentimento político que elegeria Jair Bolsonaro.
Assim que Bolsonaro se elege, o Brasil é informado de que o mesmo juiz Sergio Moro assumiria o ministério da Justiça. E hoje o próprio presidente Bolsonaro diz que que Moro pretendia usar o ministério como escada para chegar ao STF.
No último dia 10 de novembro de 2021, Sergio Moro se filiou ao Podemos, num evento em que fez um discurso de candidato à presidência da república.
Pedimos ao jurista Rogério Dultra, professor de Direito na UFF e autor do livro Teoria Constitucional, Ditadura e Fascismo no Brasil, para avalizar a gravidade dos fatos revelados nessa reportagem. Ele nos enviou o seguinte parecer:
“Por mais abjeto que seja, quando Procuradores se organizam para combinar o andamento de um processo criminal com desembargadores não estamos diante apenas de um “ponto fora da curva” ou de um “processo excepcional” que exigiria “medidas excepcionais”, como inclusive argumentou no corpo do processo um desembargador do próprio TRF4.
Estamos sim diante de velhas práticas da justiça criminal brasileira, que criminaliza a pobreza, investiga sem fundamentos, condena sem devido processo e prende sem provas. A justiça criminal é política e funciona politicamente.
A Operação Lava-Jato se manteve rigorosamente dentro dessa “normalidade” esdrúxula, lamentável, vergonhosa.
Nesses termos, a violação do devido processo não é, infelizmente, a exceção. É a regra.”
Transcrição de texto do procurador Sergio Lauria presente num dos diálogos acima:
“O sucesso da Lava Jato deve-se em grande parte a fatores absolutamente objetivos: a delação premiada, e o caráter sistemático utilizado no tratamento das informações nela obtidas. Isso permitiu o conhecimento e o mapeamento (ainda que incompleto) das atividades criminosas das quadrilhas que se apoderaram do establishment nacional e o enfrentamento consistente e eficaz da corrupção. Recursos foram devolvidos aos cofres públicos, prisões de políticos e empresários estão sendo executadas, e um governo foi deposto através do impeachment. A pergunta que se faz é: e os fatores subjetivos? Tiveram alguma importância nesse processo? Refiro-me mesmo à idiossincrasia dos que estiveram lá até agora à frente das investigações, seus ideais, preferências, grau de conhecimento e experiência, vocação, etc. Foram eles essenciais para que aqueles dois fatores objetivos dessem resultado? Não tenho a mínima dúvida que sim. Uma delação premiada depende não apenas dos termos em que é (friamente) proposta, mas fundamentalmente da empatia e relação de confiança que se estabelecem entre os atores que a assinam. Por isso, na minha opinião, não há como se objetivar a escolha de colegas que conduzem as investigações (ela dependerá e muito da sensibilidade de quem estiver no comando). Afinal, desprezar o estilo e não reconhecer-se.
Sergio Lauria”
Outro lado
Todos os procuradores citados na reportagem foram contatados. Eles preferiam não se manifestar.