POR FABRÍCIO RINALDI
“Vocês pertencem ao pai de vocês, o Diabo, e querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira.” João 8:44
O motivo de eu escrever este texto é o surpreendente (e nada cristão) apoio da Congregação Cristã no Brasil ao candidato que enaltece torturadores, se envolve com milicianos, diz que tem que fuzilar opositores e que tem como base de seu discurso e sua vida o ódio e a mentira.
Eu cresci numa família evangélica. Pai, mãe, tio, tia, avó, avô, primos… Desde criança estive nos bancos da Congregação Cristã no Brasil. Enquanto meus parentes oravam, cantavam hinos, testemunhavam nos microfones da igreja, eu e meus primos brincávamos de carrinho pelo chão. Cresci nesse meio.
Minha família frequentava a filial do Mandaqui, na zona norte de São Paulo. Chamamos de “comum” a unidade da igreja que você escolhe frequentar. É normal ouvir o questionamento dos irmãos “Qual é a sua comum?” como uma forma de se conhecer e ter uma ideia da região onde a pessoa mora.
A igreja tem alguns problemas conceituais. Por exemplo, é patriarcal. As mulheres não podem cortar o cabelo e usar calças, uma vez que o entendimento é que não exponham seus corpos para serem desejados. Por isso vemos as irmãs sempre utilizando saias longas. Nos cultos, homens e mulheres ficam sentam-se em lados opostos: mulheres à direita do púlpito, homens à esquerda, orquestra no meio. Uma forma de evitar o contato e, quem sabe, a tentação. Diversos cargos e posições da igreja não podem ser ocupados por mulheres. Há movimentos tentando mudar isso, mas são extremamente tímidos.
Também sempre foi proibido assistir televisão, a partir da mesma compreensão de que seu conteúdo viola as regras do divino. Nunca conheci ninguém que obedecesse isso. O que eu lembro bem era: “Hoje teremos visitas de irmãos, vamos esconder a televisão no armário”. E assim ocorria.
Mesmo com todas essas questões controversas (e muitas outras) sempre tivemos orgulho de pertencer à Congregação. Explico os motivos. Naquela época os “crentes” eram muito criticados por sua “doutrina rígida”, o que produzia em nós uma certa sensação de “outsiders sociais”, e isso nos dava ainda mais orgulho de pertencer a algo “diferente”.
Aliás, sempre nos gabamos de que a Congregação era diferente das demais igrejas evangélicas. Não existem pedidos de dízimos, lá não chamamos os “líderes” de pastores (são outras denominações), não existe a “hora da coleta” que causa constrangimento nos irmãos, os instrumentos tocados pela orquestra são clássicos (violino, violão, celo), mas, principalmente: é proibido qualquer envolvimento com política. Você pode ter sua opinião, mas não deve misturá-la com a Igreja. Faz parte da doutrina da CCB:
POLÍTICA
Nas congregações não são admissíveis partidos de espécie alguma; cada um é livre, cumprindo o seu dever de votar, que é uma determinação da lei.
Não se deve permitir que candidatos a cargos políticos venham fazer propaganda ou visitar as casas de oração com essa finalidade.
Se algum irmão ou irmã assumir encargo político e estiver ocupando cargo ou ministério na Obra de Deus, deverá renunciar a este.
Quando alguém for convocado pela Justiça Eleitoral para trabalhar nas eleições; deverá comparecer e cumprir esse dever cívico.
A relação entre os irmãos sempre foi pautada na solidariedade, na empatia, no amor e nos ensinamentos cristãos. Por exemplo, quando termina um culto, os irmãos se cumprimentam com um aperto de mão e um beijo na bochecha. Há grupos que se organizam e doam cestas básicas aos necessitados, visitam enfermos ou em depressão, não importa em qual cidade do país (e às vezes do mundo). Sempre que eu precisava doar alguma coisa, era para a igreja que eu doava pois sabia que dariam o destino correto. Sempre identificamos como a igreja da caridade e do amor ao próximo.
Houve uma época em minha vida que cheguei a questionar a existência de Deus, quase me tornando ateu. Contudo, após um grave acidente ocorrido em minha vida, me apeguei novamente à igreja e às orações. Nessa fase eu pude sentir Deus atuar em minha vida de diversas formas. Coisas inexplicáveis aconteceram…enfim. Decidi apenas acreditar, sem questionar.
Mesmo afastado, mantive o orgulho em dizer: essa igreja é apolítica. Você não vai ver qualquer coisa parecida com Malafaia, Waldomiro, Feliciano e outros que emporcalham o nome dos cristãos. Tampouco nada parecido com Bolsonaro. Inclusive, um parente meu que tinha cargo na Igreja faleceu de COVID. Ele era totalmente contra Bolsonaro. Enxergava nele exatamente o oposto dos valores cristãos.
No começo deste ano, numa live do DCM, comentávamos sobre a influência dos pastores na política. Eu, orgulhoso de ter uma família da Congregação, fiz questão de pontuar a nossa visão apolítica. No mesmo instante, li as mensagens de algumas pessoas no chat escrevendo que também eram da Congregação, que ela estava se envolvendo em política e ao lado do fascismo. Não pude acreditar. Passei meu Instagram e pedi para que me enviassem provas. E as recebi.
O Conselho de Anciães da Congregação, presidido por Cláudio Marçola, recebeu André Mendonça em abril e permitiu que ele testemunhasse no microfone da igreja (permitido apenas para batizados).
Abaixo, o trecho do dos ensinamentos da CCB sobre convidados:
TESTEMUNHADOS DA GRAÇA QUE TRAZEMOS PARA ASSISTIR O CULTO - PRECAUÇÕES.
Irmãos e irmãs que trazem para assistir o culto altas personalidades, ministros de denominações religiosas e outros testemunhados, não devem comunicar isso ao servo da congregação antes do início do serviço, nem testemunhar que os trouxeram, pois tal comportamento faz com que o servo perca a franqueza de pregar a Palavra, como também faz com que aquele que nos está visitando não receba a Palavra, notando que o servo ficou sabendo da sua presença. Podemos apresentar nossos convidados ao servo após terminado o culto.
Deve-se evitar de convidar testemunhados para assistir a Santa Ceia.
Por que receber o ministro do STF na Igreja? Por que o Conselho de Anciães se reuniu para fazer fotos com alguém que sequer é irmão na fé? Por que dar espaço a ele no púlpito dos testemunhos, prática autorizada apenas a batizados? Por que começaram a surgir circulares com conteúdo político e eleitoral?
Bem, receber o ministro nas dependências da igreja e com toda a publicidade já seria bem incomum e proibido pela doutrina. Mas eu realmente fiquei pasmo quando li uma circular que falava sobre “comunismo” e o perigo dessa ideologia para a sociedade, fazendo um tipo de orientação de voto no candidato que se opusesse a ela.
Meu chão desabou. Tudo que conheci, nos quase 40 anos de minha vida, fora destruído naquele momento. Tentei acreditar que era um mal-entendido e que em breve as coisas seriam corrigidas. Até que veio uma nova circular, desta vez, com conteúdo explícito, abertamente orientando os fiéis a não votarem em candidatos que acreditem em modelos de família diferentes de Homem e Mulher, logo, orientando voto em Bolsonaro.
Contei para meus parentes, imaginando que teriam a mesma indignação, já que são fiéis defensores da doutrina. Para minha total surpresa (e indignação), não conseguiram criticar. Um deles disse: “Cuidado, se expuser isso, quem estará em perigo é você”, além de um silêncio ensurdecedor e brutal sobre a prática que está claramente em desacordo com o próprio estatuto da entidade.
Não sei qual tipo de perigo eu poderia enfrentar que venha de “homens de Deus” (talvez eu possa imaginar), mas acredito que, apesar de tudo, não estou lidando com uma máfia e sim com uma Igreja. E denunciar o descumprimento do estatuto da entidade deveria me coloca no lugar de alguém que quer salvar a igreja e não destruí-la.
Aprofundei minhas pesquisas e acabei descobrindo um submundo da Congregação que eu jamais poderia imaginar. Denúncias de diversas naturezas. Deparei com um áudio de um discurso explicitamente mentiroso de Salvador Bueno, que compõe o Conselho de Anciães, dizendo que um novo governo Lula fecharia Igrejas.
Que tipo de pessoas está conduzindo a Congregação Cristã no Brasil? No que a estão transformando? Vale ressaltar que essa inclinação aconteceu logo após a visita de André Mendonça. É inaceitável que um grupo de irmãos que compõe o conselho usem a igreja para induzir pessoas a votarem em um político que nada tem de cristão.
Não é papel da igreja. É uma vergonha, é uma afronta a toda irmandade que está sendo resumida a um grupo de bolsonaristas falsos cristãos.
Sigo sendo cristão pois o que vivi, presenciei e recebi de Deus me impede de não acreditar em sua existência, seja ela como for. Acredito verdadeiramente que somos extremamente limitados para entender ou explicar Deus. Ainda não tenho uma nova agremiação religiosa, apesar de flertar com algumas que respeitam, de fato, os valores e princípios cristãos.
O câncer da CCB está dentro dela mesma, está naqueles que descumprem os princípios de seu estatuto e utilizam de sua influência religiosa junto ao rebanho para fazer política, para agir como lobos conduzindo ovelhas ao precipício, induzir irmãos e irmãs a votarem num candidato que enaltece a tortura e a morte.
O que Jesus diria disso?
https://www.youtube.com/watch?v=rQEROS8JKYc