Limites da liberdade: Pode Bolsonaro gritar “fogo” em um teatro lotado?
Publicado originalmente no Consultor Jurídico por Lenio Streck
Li nas redes sociais uma defesa da “liberdade de expressão” (sic) em face de o Facebook e o Instagram terem tirado Bolsonaro do ar depois que ele disse que, segundo um jornal britânico (sic), as vacinas faziam com que os vacinados desenvolvessem AIDS. Sim, isso mesmo. Os detalhes disso estão nas diversas mídias, de direita e de esquerda.
A defesa da “liberdade de expressão” de Bolsonaro, é claro, estava baseada em Brecht. Como gostam de citar Brecht. Logo Brecht. Se há alguém que não pode ser citado por quem prega o fim da democracia é Brecht. Seus poemas vão na mão contrária dos negacionistas de hoje.
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E lá vem o poema: “Primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso; eu não era negro… etc etc”. Outro liberticida citou o poema do brasileiro Eduardo Alves da Costa, que é seguidamente confundido com Brecht (Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim…). E diz o post nas redes: “— Viram? Primeiro censuram Bolsonaro, depois censuram você”. Um deles ainda pergunta: “— Hei, jornalista, você não vai fazer nada?”
Paremos as máquinas. Calma. Muita calma nessa hora. Vamos pegar Brecht, mesmo? Ou o Eduardo Alves da Costa? Qual é o jornalista sério, que não seja propagador de mentiras (fake news), que diria uma mentira do tamanho dessa dita pelo presidente da República?
“Liberdade de expressão”. Muito bonito. O que não se explica é o que essa gente entende por liberdade. Esse é o busílis.
Bom, se você é alguém, político, advogado ou jornalista, que acha que um presidente de um país que tem até agora mais de 600 mil mortos pela Covid-19 tem o direito à livre expressão para incentivar a não vacinação, então, OK. Faça uso dos poemas de forma fake e corra para a galera. Decore os poemas. São bonitos.
Está certo que há pessoas que não acreditam que o homem foi para a lua; e acreditam que Adão e Eva existiram. Mas dizer que Adão e Eva existiram não faz mal para ninguém.
Agora, se um presidente da República diz, em seu canal oficial, calculadamente, que vacina pode provocar AIDS, aí o bicho pega.
Há uma famosa tirada de Holmes, famoso juiz norte-americano, que se usa para mostrar a potencialidade de uma fala (nem vou falar aqui de John Austin, acerca dos discursos perlocucionários): se alguém grita — de forma mentirosa —, no meio de um teatro lotado, a palavra “fogo”, por certo não estará exercendo sua liberdade de expressão.
Eis o ponto. Ou os pontos. Não é a primeira vez que Bolsonaro nega o valor das vacinas. Até mesmo na ONU disse isso.
Só que desta vez Bolsonaro gritou “fogo” no teatro. E queimou todas as caravelas. O Rubicão brasileiro já tem muitas pontes. Já foi atravessado trocentas vezes. Vai ver é isso que entendem por “direito de ir e vir”, essa gente que entende a propagação do vírus e de mentiras como um direito fundamental. Vai ver que é isso…!
É fogo!