São Paulo é uma cidade doente. Muito doente.
Depois de asfixiar e ensurdecer a população vizinha, o tráfego de veículos sobre o Minhocão, em São Paulo, será extinto até 2029. Isso já foi decidido pela Câmara Municipal.
A cidade inteira deveria estar comemorando. Ao invés disso, ninguém sabe o que aconteceu e, pior, não sabe o que pode acontecer.
Ao extinguir o trecho elevado de uma das principais artérias de tráfego entre as zonas leste e oeste da capital, a primeira necessidade seria encontrar uma solução para a deficiência de transportes públicos que a eliminação da via elevada irá causar.
Só que não.
A primeira e até agora única discussão na Câmara Municipal de São Paulo é se o Minhocão deve ser transformado num parque construído sobre uma laje de concreto. Ou seja: um vaso de 3,4 quilômetros de extensão.
Isso dividiu a cidade em dois grupos inconciliáveis, e a disputa está esquentando em todos os sentidos, à medida em que o projeto de lei, que institui o parque, vai se aproximando da votação.
Durante quase 50 anos ficou cientificamente comprovado que a poluição debaixo da laje é muito pior do que no resto da cidade, e o barulho também. Foi demonstrado por pesquisas que ele provoca câncer, doenças pulmonares, lesões auditivas e transtornos mentais. Obviamente, diminui a expectativa de vida nas vizinhanças.
Por outro lado, sua manutenção como área de lazer após a extinção do tráfego não irá resolver nenhum desses problemas, mas poderá criar outros, como trânsito mais lento e caótico, redução dos investimentos públicos nos demais parques e áreas verdes da cidade, riscos ambientais – vasos precisam ser constantemente regados e falta água na cidade – e propagação de ainda mais doenças, como as arboviroses dengue, zika e chikungunya. Vasos precisam ser cobertos de areia.
A população da cidade inteira não foi informada de nada disso. E nem sequer os vereadores que irão autorizar ou evitar esses riscos.
Como isso é possível?
É muito fácil explicar e você já conhece muito bem a resposta: lobby.
Só existem basicamente dois grupos participando desse debate. Contra o parque, e a favor do desmonte, estão as diversas associações de moradores dos bairros de Santa Cecília e Barra Funda, dispersas e formadas por cidadãos, com pouco recursos, que sofrem diretamente os efeitos nocivos da via expressa.
Para promover o PL 10/2014, de autoria do vereador José Police Neto (PSD) e do então vereador Nabil Bonduki (PT), foi montada a Associação Parque Minhocão, uma associação sem fins lucrativos que, no entanto, promove negócios muito lucrativos para seus associados e clientes.
Um de seus sócios é o arquiteto Marcio Kogan, da Paraty House da Globo, que invadiu a praia de Santa Rita, dentro de uma área de preservação ambiental. Os leitores assíduos do DCM conhecem muito bem o assunto.
Outro sócio da entidade, Athos Comolatti, é um empresário detentor de um capital de 22 milhões de reais em imóveis. O apartamento que abriga a sede da sua associação, próximo ao Minhocão, é apenas um deles. É lá que ocorrem convescotes privados em torno de interesses que são de todos.
A associação pró-parque tem uma atuação agressiva no marketing de seus interesses, e não só. Está registrada como uma produtora de feiras, festas e eventos, e nisso ela não brinca em serviço.
Para eles, o parque já é uma realidade, pois a laje já foi invadida nos finais de semana. Só esquecem que a carência de lazer na cidade é tão grande que qualquer vácuo sempre será preenchido. Na periferia o sucesso seria maior ainda. Sobre a laje, depois dos alertas sobre o risco de acidentes feitos pelo Ministério Público, com a ajuda do Corpo de Bombeiros, o movimento caiu
As multidões que invadiam o Minhocão para se divertir tiveram muita sorte de não serem vítimas de uma tragédia centenas de vezes pior do que a da boate Kiss.
Aquilo também é uma arapuca sem saída.
O grupo praticamente tomou conta do Minhocão, promoveu grande eventos sobre ele, nos finais de semana em que permanece fechado aos carros, e possui diversos patrocinadores.
Entre eles, uma famosa marca de sorvete, flagrada distribuindo amostras-grátis ao lado de uma banca de coleta de assinaturas a favor do parque. Talvez uma simples coincidência, mas ninguém nunca patrocinou as entidades que são contra essa ideia.
Exibem uma intimidade com os corredores da Câmara Municipal que, ao contrário dos defeitos do parque, fazem questão de exibir. Brindam com champanhe e posam para fotos sorridentes na sede da entidade em reuniões de comemoração dos avanços do projeto, com a presença do vereador Police Neto.
A intimidade é tamanha que beira a paranormalidade: publicaram no dia 11 de outubro o anúncio de uma audiência pública que só foi marcada pela Câmara no dia 18. E acertaram a data e o horário.
Apesar dessa e de outras irregularidades formais, a audiência foi realizada na Praça Marechal Deodoro. Muitos dos “ativistas” que trabalham pela associação do parque se pronunciaram.
No final, esses mesmos ativistas recolheram as mesas, cadeiras, equipamentos e a faixa de propaganda do produto-parque colocada à frente da mesa em que só havia o vereador autor do projeto.
Para azar deles, choveu nesse dia e a audiência foi realizada debaixo da pista do Minhocão. Ao invés do céu azul, só se via o inferno do lado de baixo. Terminado o evento, o barulho da sirene de uma ambulância, amplificado pela caixa de ressonância do teto, ensurdecia as pessoas que se despediam.
Para atingir o público classe A, o projeto do parque tentou obter algum reconhecimento da 11ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, que promove uma série de eventos paralelos. Como promotora de eventos que é, a associação do parque não poderia deixar de participar.
Para isso, montou uma exposição de fotos e debates, todos mediados por seus colaboradores e com a presença de Kogan, da Paraty House, na programação.
O local escolhido não poderia ser mais adequado: o terreno – “gentilmente cedido” – de uma demolição que dará lugar a mais um empreendimento imobiliário ao lado do Minhocão sobre a rua Amaral Gurgel.
A direção da Bienal, porém, percebeu a jogada e mandou retirar qualquer insinuação de apoio ao projeto.
Toda a campanha de marketing do parque gira em torno do conceito de “resignificação”. Nada mais significativo do que revelar o significado dela.
Enquanto os moradores sobreviventes de Santa Cecília e Barra Funda, depois de 40 anos de guerra, enfrentam sozinhos os exércitos entrincheirados sobre a muralha de concreto, a cidade segue alheia a um destino que será diretamente afetado pelo resultado dessa guerra, tão ensurdecida quanto ela.
O clima de guerra é consequência do próprio projeto de lei, que oferece uma falsa solução para um falso problema. O texto, propositadamente vago e omisso, permite qualquer coisa. Não apresenta uma única justificativa, não menciona os reais problemas imediatos decorrentes da extinção da via elevada e não diz sequer quanto a construção e a manutenção eterna desse imenso playground irá custar.
Não passa de um cheque em branco e de mais uma conta para você vai pagar, não importa o bairro paulistano em que você more.