Voltar no tempo é um experiência que joga você para as alturas e para o abismo.
Estamos os quatro Nogueiras na Wembley Park Station, na noite quente de Londres. São quase oito da noite, e estamos a caminho da Wmbley Arena.
Meu mano Kiko e seu filho Davi, meu afilhado. Camila e eu.
São cinco minutos de caminhada, e ao longo do percurso ouvimos algumas vezes: “Ingressos?”
Eram cambistas, e só não compramos porque já tínhamos os nossos.
Estávamos indo ver uma banda pela qual fui louco na adolescência, e que jamais deixei de ouvir no correr dos longos anos não apenas pela extraordinária qualidade musical mas por me fazer, instantaneamente, retornar a meus anos jovens: The Who.
São 40 anos de Quadrophenia, e vamos ver o Who celebrar essa data.
Claro que eu tinha este disco, o vinil. Kiko, doze anos mais novo que eu, lembra.
A caminho da arena, passamos pelo estádio de Wembley, e eu comento com os Nogueiras mais novos que eles estavam prestes a passar por um lugar histórico.
Ali, a Inglaterra se sagrou campeã em 1966 numa grande final contra a Alemanha de Beckembauer. O jogo empatou 2 a 2 e foi decidido na prorrogação a favor dos ingleses. Foi 4 a 2, e um dos gols simplesmente não existiu.
A bola bateu no travessão, quicou na linha e o bandeirinha afirmou que entrou. Certa vez li que, muitos anos depois, o bandeirinha – russo – disse que validou o gol por causa de Estalingrado.
Mas é noite de Quadrophenia, de Who, de reencontro fugaz com a adolescência, e ao lado dos demais Nogueiras eu estou num estado de alegria emocionada, quase comovida.
A arena está lotada, e não apenas de gente de meia idade como eu. Perto de mim vejo um rapaz na casa dos 20 com uma camisa que é a bandeira britânica. Ele cantaria todas as músicas depois, e dançaria a maioria. Seu pai deve ter sido um whomaníaco.
A banda entra no palco às 20h30. Do quarteto original, restaram Pete Towshend, o gênio da guitarra e das composições, e o grande cantor Roger Daltrey.
Keith Moon, para muitos o maior baterista do rock, é uma lembrança doída, morto em 1979 de excesso de viver. O baixista John Entwistle durou mais, e foi morrer já na casa dos 60 num quarto com duas jovens prostitutas.
Como lembrou Kiko, eram os dois gênios do Who, nas palavras de Towshend.
Estão bem, fisicamente, os sobreviventes. O tempo não os machucou. Towshend perdeu os cabelos, é verdade, mas está esguio, magro, firme – e vigoroso o bastante para aguentar um show de duas horas sem intervalo carregando o peso de uma guitarra.
Já não dá pulos, mas o braço direito ainda gira do mesmo jeito nas guitarradas que são a alma do Who.
Daltrey parece ter 50 anos, e me pergunto se o cabelo encaracolado, farto e nada grisalho é genuíno. Ainda sacode o microfone, e como da outra vez que o vi ao vivo, sempre temo que ele erre e dê uma microfonada nele ou em algum desavisado, mas ele continua muito hábil.
Eles tocam mais de uma hora antes que Pete Towshend fale alguma coisa ao microfone.
Love Reign over Me.
Bell Boy.
The Real Me.
Doctor Jimmy.
Sea and Sand.
“Não é nostalgia”, diz Towshend. “É história.”
Quase tão bonitas quanto as músicas são as imagens que passam o tempo todo em telas expostas de modo que todos possam vê-las.
Nelas, Keith Moon e John Entwistle revivem.
Entwistle é mostrado num solo espetacular de baixo. Keith Moon, cara de menino, sempre sorrindo, faz um vocal soberbo em Bell Boy.
A meu lado, um homem mais ou menos da minha idade está em lágrimas, e imagino como deve ser duro – fascinante mas triste – para ele viajar rumo às terras do nunca mais de sua mocidade.
Meus olhos talvez estejam marejados, mas deve ser pelo ar da arena. Penso nos amigos daqueles dias, tantos já mortos. O Who era um amor de todos nós. Meu primo Márcio, quando viu no meu Facebook o bilhete do show postado por Camila, deixou uma mensagem que mostrava que ele também viajou para 40 anos atrás.
E Keith Moon com sua expressão de menino, os cabelos lisos e suados pelo trabalho cobrindo anárquicos os olhos e os traços delicados, baquetas nas mãos, ah, ele me lembra meu segundo filho Pedro, a 10 mil km do pai, como o primogênito Emir, um pecado.
Is it me for a moment?
Perto de mim, Kiko está emocionado como eu. Camila está tendo uma iniciação em Who, e Davi, aos 13 anos, canta várias das músicas com sua voz potente e afinada. O pai já lhe apresentou a banda, e ele claramente gostou do que ouviu.
Dez e meia a festa termina.
Londres é assim. Tudo tem que terminar a tempo do metrô.
Me passa pela cabeça, como é comum, a frase de Dr Johnson: “Se você está cansado de Londres é porque está cansado da vida”.
Em 50 minutos atravessamos a cidade e voltamos para Ranelagh Gardens, de metrô.
Não paramos de falar do show.
Os quatro estamos felizes. Sei que os Nogueiras novatos lembrarão desta noite per omnia seculae seculorum.
Kiko, um erudito em rock, e baixista dos bons, nos conta histórias do Who.
E eu, bem, como tantos ali naquela comunidade de órfãos do rock genuíno, voltei a ter 17 anos por algumas horas.
Ri sem que fosse contada piada, cantei, levantei para dançar – e se meus olhos ficaram úmidos só eu vi, no escuro daquela arena.