Publicado originalmente no site Brasil de Fato
POR NARA LACERDA
A Petrobras está encolhendo, mas o lucro dos acionistas segue em sentido contrário. Para o consumidor final, os preços do combustível e do gás de cozinha estão cada vez mais altos. A equação vem sendo apontada pelos petroleiros, em greve há quase vinte dias, como sintoma de um processo de desmonte da estatal.
Números do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) indicam que entre, 2013 e 2018, a Petrobras foi a empresa do setor que mais demitiu funcionários em todo o mundo. Foram mais de 270 mil trabalhadores dispensados de suas funções.
Os investimentos também vêm demonstrando queda. Um levantamento do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) compila os dados mais recentes disponíveis e mostra que, entre abril e setembro do ano passado, foram investidos pouco mais de R$ 20 bilhões. O resultado de seis meses é menor que o registrado somente nos últimos três meses de 2015, por exemplo, quando foram investidos quase R$ 21 bilhões.
Privatização lucrativa
Mesmo com investimentos mais baixos e menos trabalhadores produzindo, os lucros dos acionistas da empresa sobem. No segundo trimestre do ano passado, a venda de uma rede de gasodutos que interliga as regiões Sudeste e Nordeste, somada à alta do dólar e do preço do petróleo no mercado internacional, gerou aumento de 89% nos lucros da empresa em comparação ao mesmo período do ano anterior. Um resultado recorde e que representa R$ 18,9 bilhões.
O economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Eduardo Costa Pinto, afirma que houve um aprofundamento no desmonte da Petrobrás a partir de 2016.
“É importante que a gente entenda o que é esse desmonte, o que é essa transformação profunda da estratégia da Petrobras e da regulação do setor de Petróleo e Gás. A ideia é que a Petrobras tem que trabalhar com uma lógica de empresa privada. Isso significa maximizar os lucros para os acionistas. A preocupação social não passaria pela Petrobras, nem a questão do crescimento econômico, nem a questão de controle de preços, nem a questão inflacionária.”
Eduardo Costa ressalta que o movimento veio acompanhado de uma diminuição no refino e de aumento na exportação do petróleo cru. Ou seja, o Brasil está vendendo mais a matéria-prima e produzindo menos o produto final.
“Com a descoberta do pré-sal e com a mudança da política de conteúdo nacional – que obrigava a Petrobras a comprar equipamento de empresas nacionais – criou-se um instrumento de incentivo à indústria brasileira. O país tinha uma estratégia de estimular investimento, expandir a Petrobras para diversas áreas e integrar ainda mais a Petrobras. São características das grandes empresas do setor. A partir de 2016, vem uma mudança profunda, com o argumento de que o pré-sal é inviável e que temos que diminuir custos. Foram reduzidos os impostos sobre os bens de capital importados, foi reduzido o conteúdo local e a Petrobras deixou de ser operadora única. Com isso, a Petrobras se configura e se articula em um cenário em que ela precisa maximizar lucros. É uma estratégia de encolher a empresa, gerar caixa no curto prazo e dar mais receita para os acionistas.”
O economista explica como essa mudança de direcionamento acaba no bolso do consumidor.
“Nesse momento a empresa deixou de ter a face social e estatal, para ter apenas uma face privada. E o que ela faz? Ela exerce seu poder de mercado de forma plena. Uma empresa que detém mais de 90% do mercado de derivados! Ela cobra o maior preço possível e tem o maior lucro possível em detrimento dos consumidores. Uma estratégia que beneficia os acionistas. Usa-se o argumento de que a empresa está quebrada, mas é uma mentira. Temos estudos no Ineep que indicam que é possível reduzir os preços e aumentar o investimento, basta manter o nível atual de endividamento que não é tão grande assim. A greve dos Petroleiros passa por uma discussão sobre o papel da Petrobras no desenvolvimento nacional e no projeto de autonomia do Brasil. A greve é também sobre o bolso dos Brasileiros!”
Fatiamento
Em mais de uma ocasião, o secretário especial de Desestatização, Desinvestimentos e Mercados do governo Bolsonaro, Salim Mattar, afirmou que a Petrobrás não está nos planos imediatos de privatização da gestão atual. Nesta semana, durante um evento de um banco de investimentos privado, ele declarou: “Vamos vender tudo o que é possível, e deixar essas empresas para o final”.
Mesmo sem a intenção declarada de desestatizar a empresa, o governo já deixou de ser o maior acionista da BR Distribuidora, que tem 30% do mercado nacional e mais de oito mil postos espalhados por todo o país. Em janeiro o BNDES anunciou oferta pública global de ações da Petrobras, para interessados brasileiros e estrangeiros.
Além disso, a Estatal encerrou suas atividades no continente africano e está em pleno processo de venda de diversas refinarias. Um dos argumentos é que a participação da iniciativa privada vai gerar redução de preços. Eduardo Costa Pinto diz rebate a explicação.
“As refinarias que estão a venda, por exemplo, são distantes umas das outras e não concorrem entre si. Você está transformando um monopólio estatal em um monopólio privado e sem regulação. Os preços tendem a ficar iguais ou aumentar. Claro que não será possível controlar esses preços no setor privado. É um completo desmonte do setor, que vai beneficiar os acionistas e vai prejudicar a população não só no bolso, mas também na geração de emprego e renda. Porque hoje a Petrobrás já está cada vez mais importando plataformas da China e da Malásia e gerando empregos no exterior”.
Debate histórico
A polêmica de ideologias em torno da exploração do petróleo no Brasil é antiga e começou antes mesmo da fundação da Petrobras. Material vasto do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas mostra quem, em 1927, o Congresso já discutia um projeto de lei que tinha como ponto chave a garantia de que “as jazidas de petróleo não podem pertencer a estrangeiros, nem ser por eles exploradas.”.
A partir da década de 1930, o governo brasileiro ampliou a tendência de legislar sobre a exploração das riquezas minerais em nome dos interesses da União. O Departamento Nacional da Produção Mineral passou a ser responsável por comandar as iniciativas de pesquisas sobre petróleo.
Por alguns anos, o poder público foi acusado por personalidades políticas e pela mídia de tentar fazer reserva de mercado e não ter a real intenção de desenvolvimento tecnológico. Em 1937, ficou definido constitucionalmente que a concessão de jazidas só poderia ser feita a empresas constituídas por acionistas brasileiros. Com a criação do Conselho Nacional do Petróleo, em 1938, o abastecimento nacional foi declarado utilidade pública, inclusive com foco específico para o refino.
O debate sobre estatizar ou não o setor permeou a criação do Estatuto do Petróleo, na década de 1940, impulsionou a campanha “O petróleo é nosso” e a criação da Petrobrás. Guardadas as proporções de cada época, as discussões sempre estiveram divididas entre os que defendiam a autonomia do país nos setores de combustíveis e energia e os que diziam que o Brasil não tinha capacidade de investir em tecnologia e deveria atrair empresas estrangeiras para o setor.
De sua criação até hoje, a Petrobras se tornou a maior empresa do país e uma das maiores do mundo. Agora enfrenta um novo momento crítico, mas ainda em meio à mesma matriz da discussão que se arrasta há quase um século.