Lula e Haddad devolveram Jair Bolsonaro à sua insignificância. Por Tarso Genro

Atualizado em 6 de abril de 2023 às 0:15
Lula e Haddad sorrindo em aperto de mãos
Presidente Lula e o ministro da Fazenda Fernando Haddad – Agência Brasil

Por Tarso Genro, ex-governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. 

Como o coordenador da casa de máquinas de um grande navio, não como um capitão tranquilo de um barco de turismo, Lula sustentou publicamente que os juros não são uma fatalidade de uma mecânica celeste de natureza mercantil, e que o custo do dinheiro deve buscar uma justa mediação – equilíbrio entre os fatores mercantis globais que determinam o seu custo e a necessidade de gastar nos investimentos sociais.

Estes, que justificam a natureza do Estado, devem respeitar a humanização do direito legítimo na democracia constitucional, enquadram o governante num sistema de poder que ele não pode e não deve, sob pena de trair o seu mandato, transferir para burocratas de qualquer natureza, mormente aqueles egressos de um governo fascistóide e genocida, como estes que estão hoje no Banco Central do país.

Ao exigir que esta ambiguidade entrasse no debate das políticas do governo, Lula começou a unificar as pautas fragmentárias (algumas esquisitas), do início do seu governo, e criar um novo eixo de “concertação”: sem vitória econômica e combate às desigualdades tributárias e sociais, o combate ao fascismo fracassa, pois ele só respira pela auto estima destroçada pela fome e pelo desemprego, associados à cultura da intolerância que daí se firma: de uma parte, estimula nas classes médias altas e nos ricos em geral o ódio aos deserdados que eles mesmo criaram com seus privilégios de classe e com seus partidos oligárquicos e, de outra, estimula os miseráveis e buscar compensações fora do “reino deste mundo”, para serem explorados mais uma vez pelas religiões do dinheiro.

No baleeiro “Pequod”, o desejo de vingança do seu Capitão Ahab, contra uma baleia que – em outra missão de caça – lhe mutilou, leva a tripulação do navio ao paroxismo do medo e da insegurança. Nos mares gelados do norte, Ismael, o narrador, e Ahab – o Capitão com sua perna de madeira e o seu ódio à flor-da-pele – e a baleia branca Moby Dick, cruzam suas vidas numa das maiores novelas da literatura moderna. Seu autor, Herman Melville, escreveu uma outra obra prima, a pequena novela (ou conto), Bartleby – o escriturário, onde a tolerância e o controle da vontade dos humanos na sociabilidade do trabalho, são testados no seu extremo. Ambas se completam, para entendermos nosso atual drama histórico, cuja solução é tecida pelos novos remadores da reforma econômica do país: Lula e Fernando Haddad, em plena disputa hegemônica sobre os destinos da nossa democracia.

 

Moby Dick (1851) é uma saga sobre o império da força e a neurose da vontade. E Bartleby – publicada em 1853 (sua primeira parte) – faz o elogio da procrastinação, como lhe classificou certa crítica. A obra trata do misterioso acomodamento burocrático de um empregado, num escritório de advocacia de Wall Street, que sobretudo intriga e surpreende seus contratantes, cuja frase preferida – quando lhe demandam um trabalho – era: “acho melhor, não”. Trazidas para o presente, as obras literárias podem ser olhadas como uma parábola do nosso drama político, depois da derrota eleitoral de Jair Bolsonaro, que ocorreu em benefício da democracia, mas que não rejeitou de todo seu modelo sócio-econômico pervertido.

Seguramente 1\3 do eleitorado de Lula, no segundo turno, foi levado ao seu limite, para renunciar ao bolsonarismo. E o fizeram, não em função de rejeitarem suas reformas liberais ou de formarem contra o “armamento geral do povo” e contra a chacina indistinta de jovens negros da periferia, para eles identificados como bandidos, mas foi um contingente que transitou para o lulismo no processo eleitoral, porque se sentiu incomodado com a estupidez presidencial durante a Pandemia, com o aumento da fome e com a corrupção, que grassou com muito mais força no Estado brasileiro. Nem foi por qualquer apreço à democracia, mas sim pela rejeição de um fascismo que já perdia o seu “charme” na classe média alta.

Ahab, no “Pequod”, gera medo, instabilidade, crises permanentes carregadas de ansiedades multiplicadas; Bartleby – no escritório de Wall Street – gera fascínio e dúvidas, pela sua personalidade controversa, cuja negação do mundo real é, ao mesmo tempo, uma alienação e um protesto. Aahb jamais cogita lançar uma âncora para fixar o seu “Pequod” no centro do nada dos mares gelados do norte (nos mares gelados do norte “sempre se está no centro”), e Bartleby jamais pensa em outra frase que não seja um reincidente protesto alienante da vida que o capitalismo lhe reservou. Estas pontas, separadas por um deserto de teorias e palavras, que acumulam conhecimentos e sensibilidades da vida real, mostram que entre as ansiedades reinantes no “Pequod” e a negação absoluta de alternativas, na voz de Bartleby, que as pessoas – ao contrário das baleias e dos contratantes surpreendidos – podem escolher entre alternativas.

Aahb é o protesto integral da vingança absoluta sobre um ser da natureza, a baleia branca, que jamais será atingida moralmente pelo ódio multiplicado pela força, porque este ser só funciona segundo a sua natureza primal (como diria o mercado); Bartleby é o recuo neurótico do derrotado, sempre isolado no festival de negações, que não consegue enfrentar a “natureza” balear do mercado, que exige certas atitudes, às quais ele diz “preferir” não fazer nada do que seria o seu dever: porque certamente entende “não valer a pena” ou “não ser possível”, “sem alternativas” (como diria o consenso de Washington). Bartleby é a impotência do humano, exilado na inércia de uma subjetividade aniquilada.

A âncora fiscal de Fernando Haddad e Lula é a engenhosidade da política. Entre estes dois raciocínios extremos estão, na primeira hipótese, a concepção de que bastaria a força da vontade política de Ahab para aniquilar a baleia branca, simplesmente determinada por um desejo política generoso que baixaria os juros e assim “ancoraria” a estabilidade no crescimento, que daí adviria; na segunda hipótese (“acho melhor não”) de Bartleby, está a resposta da impotência total, que considera que não existem políticas contra a lógica material do mercado. E que este é um segundo andar da natureza, projetada mecanicamente na consciência dos humanos. Lula e Haddad venceram o grande “round” inicial e devolveram Jair Bolsonaro a sua insignificância doentia. O resto está para ser construído. E já começou.

Publicado originalmente no site A Terra é Redonda

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