Por Jeferson Miola
No sábado, 19/8, o presidente Lula se reuniu por cerca de duas horas com o ministro da Defesa e os comandantes das três Forças no Palácio do Alvorada.
“Só um país em crise faz uma reunião, sábado, de seis às oito da noite, no palácio residencial, entre os comandantes militares e o presidente da República”, destacou Miriam Leitão em artigo. Para a jornalista, esta reunião “tem a marca de um erro histórico”.
Na véspera do encontro – na 6ª feira, 18/8, portanto – o general Tomás Paiva, comandante do Exército, publicou uma Diretriz Especial [Ordem Fragmentária nº 1] para o biênio 2023/2024.
A normativa, na realidade, é uma estratégia de reposicionamento dos militares na política e de recuperação da imagem institucional, fortemente desmoralizada e desacreditada.
É um documento de caráter endógeno, autorreferenciado e ensimesmado que, por isso, reforça a visão militar reinante, disparatada e apartada da realidade.
No preâmbulo da Ordem Fragmentária o general Tomás explicita a prioridade do Exército para os próximos dois anos: desenvolver ações “para continuar o processo de fortalecimento da coesão interna, valorizando a Família Militar, a dimensão humana e o culto aos valores e às tradições, bem como realizar e comunicar, da melhor maneira possível, as diversas ações desenvolvidas em prol da sociedade em geral, além de acompanhar temas do interesse do Exército”.
A “Defesa Nacional”, que não é citada no preâmbulo, embora constitua a missão primordial das Forças Armadas, aparece no texto com apenas metade das menções feitas à “Família Militar”.
O general elenca um conjunto de privilégios de casta que vão na contramão da República e são contraditórios com o requerimento de uma reforma militar nos termos propostos pelo professor e especialista na área, Manuel Domingos Neto. A Diretriz prevê:
- “medidas que garantam um Sistema de Proteção Social dos Militares das Forças Armadas adequado às necessidades da Família Militar;
- ações voltadas para o bem-estar da Família Militar, […] otimizando o Sistema de Assistência Social;
- aperfeiçoar o Sistema de Saúde do Exército […];
- aperfeiçoar o Sistema Colégio Militar do Brasil […];
- majorar o número de moradias […];
- intensificar o contato com veteranos, pensionistas e ex-alunos dos colégios militares, com vistas a manter a coesão e estimular o convívio da Família Militar;”.
O insaciável lobby militar por mais verbas e mais orçamento para regalias, privilégios, altos salários, pensões vitalícias de filhas de militares, compras superfaturadas e outros abusos, é outra prioridade corporativa central.
Indevidamente, o comando prioriza “acompanhar a tramitação do novo arcabouço fiscal, visando ações oportunas para o atendimento de demandas reprimidas”. E busca “a ampliação de recursos orçamentários, por meio de créditos adicionais, emendas parlamentares, convênios com ministérios e outras parcerias de interesse do Exército”.
O general Tomás ainda anunciou a criação de uma esdrúxula “Associação de amigos do Exército Brasileiro, em nível nacional”. Segundo o comandante, esta perigosa medida, que deve ser proibida pelo Governo Federal, proporcionará “a interlocução com personalidades e autoridades civis”.
Ao passo em que apresenta medidas que aprofundam os vícios e idiossincrasias do Exército, por outro lado o general Tomás não menciona nenhuma medida saneadora a respeito de altos oficiais – muitos deles que inclusive ocuparam postos no Alto Comando do Exército – envolvidos em crimes diversos, atentados à democracia, esquemas de corrupção e desvios.
A omissão tem explicação: trata-se de condescendência criminosa [artigo 320 do Código Penal Civil e 322 do Código Penal Militar] do comando do Exército em relação a delinquentes fardados implicados em toda sorte de ilícitos e crimes, mas que ficarão impunes e protegidos.
Basta dizer que a corporação ainda não instaurou nenhuma apuração em relação ao tenente-coronel Mauro Cid, que foi mandado fardado à CPMI dos atos golpistas porque respondia por crimes cometidos enquanto “cumpria missão militar”, como o próprio Exército justificou.
Como dito acima, no dia seguinte à publicação da Ordem Fragmentária nº 1, o presidente Lula reuniu com o ministro Múcio e os comandantes das três Forças no Alvorada. A cronologia destes eventos é relevante.
Se, quando da reunião de sábado [19/8] Lula ainda não tinha sido informado a tempo pela sua assessoria direta e pelo seu ministro da Defesa acerca desta normativa do Exército, há aí uma falha gravíssima.
Caso, no entanto, o presidente tinha conhecimento prévio do teor da normativa, mas mesmo assim preferiu não determinar sua anulação, então estaremos diante de uma escolha muito preocupante.
Lula precisa anular esta norma absurda do Exército que prioriza os interesses da “família militar”, cria uma esdrúxula associação de amigos do EB e deixa de lado a missão primordial e exclusiva das Forças Armadas, que é a Defesa Nacional.
As concessões aos fardados, os recuos e os arreglos com eles para safar a responsabilidade da instituição em crimes diversos e nos atentados contra a democracia é uma opção que coloca a democracia em risco. Neste sentido, o café da manhã de Arthur Maia, presidente da CPMI dos atos golpistas, com o comando do Exército [23/8], é absolutamente equivocado e inaceitável; é um desserviço.