Após o discurso de Lula ontem no Centro de Transição, no CCBB, a Bolsa apresentou queda, o dólar subiu, e a imprensa econômica apurou, junto a suas fontes de sempre, que os dois fatos estariam correlacionados.
Ou seja, o mercado teria reagido mal à fala do presidente eleito, especialmente aos trechos em que ele critica o dogma da responsabilidade fiscal, contrapondo-o à costumeira displicência, ou mesmo indiferença com que o problema da fome é tratado pelas autoridades responsáveis.
A história é ilustrativa porque produziu o primeiro “fato negativo” de um governo que ainda não assumiu. A economista Elena Landau, que era uma das coordenadoras do programa econômico de Simone Tebet, reagiu com irritação ao discurso de Lula, dizendo que ele era exclusivamente voltado ao PT.
Henrique Meirelles, que foi um dos cotados para o ministério da Fazenda, e aparentemente um dos primeiros a serem cortados da lista, também chiou. “O Lula dilmou”, disse Meirelles, o que deve ter sido a maneira mais direta que encontrou de avisar que estaria se distanciando do governo e aderindo aos críticos.
Os neoliberais mais bolsonaristas e agressivos fizeram uma pequena festinha, entoando a música do “eu avisei”.
Na esquerda, por outro lado, a satisfação também foi grande, e pelos mesmos motivos que irritaram o campo neoliberal.
Lula riscou uma linha no chão, deixando claro que não permitirá que o povo continue passando fome em nome de nenhuma programa de “austeridade fiscal”, com direito inclusive a um chiste: a regra de ouro do meu governo, explicou o presidente eleito, será comida na mesa.
O petista também reiterou, todavia, o seu compromisso com a responsabilidade fiscal, lembrando a redução da dívida pública em seu governo, além do pagamento da dívida externa.
Lula já percebeu que a conjuntura política de seu primeiro ano de governo será diferente daquela de 2003, quando administrou o país pela primeira vez.
O governo terá que manter alto apoio popular durante todo o mandato, mas especialmente no primeiro ano, e um eventual aumento de dívida pública seria um preço pequeno a pagar diante da instabilidade política que adviria de um processo precoce de erosão de prestígio.
O golpe de 2016, a propósito, foi a grande lição nesse sentido. Ele só foi possível porque Dilma Rousseff cometeu o erro político de 2015, de tentar agradar os “mercados” com Joaquim Levy e um programa de austeridade, que seria necessário, entendeu o governo na época, para reconquistar a confiança dos agentes econômicos, antes de iniciar um novo ciclo de investimentos.
O resultado foi que não houve austeridade, nem reconquista de confiança, nem novo ciclo de investimento e se deflagrou um processo de instabilidade política que, por sua vez, contaminou a economia, destruindo milhões de empregos e empresas.
Com uma oposição mobilizada, fascista e armada até os dentes com ferramentas de fake news, seria perigoso e pouco inteligente se entregar ao jogo hipócrita dos “mercados”, que no fundo não estão interessados em austeridade fiscal, e sim apenas em assegurar o controle sobre as finanças públicas, de maneira a usá-las de acordo com seus interesses financeiros e políticos.
Não se deve temer a oscilação volátil dos mercados financeiros. Os índices caem e sobem. Quanto ao câmbio, ele também não deve ser motivo de grande preocupação, em função da magnitude das exportações brasileiras. O câmbio é problema grave quando o país tem déficit comercial. Quando tem superávit, tudo se resolve naturalmente. E o Brasil vive outro boom de suas commodities (aliás, foi por isso que foi difícil derrotar Bolsonaro).
Nos últimos três anos, a balança comercial tem batido recordes históricos. Câmbio nunca é problema nesses casos, porque se o dólar subir, é mais divisa que entra no país, aumentando nossa capacidade de importar outras coisas.
Os problemas do Brasil são exatamente aqueles expostos por Lula: a fome, a má distribuição de renda, a defasagem na educação, a saúde precária.
O “mercado” não costuma olhar para esses problemas porque é uma entidade fantasmagórica, fictícia, cujas ideias e palavras são, na verdade, aquelas que seus “intérpretes” desejam que sejam. E os intérpretes costumam ser gerentes de banco, operadores de mercado financeiro, economistas ultraliberais, que já cometeram tantos erros terríveis nos últimos anos que é surpreendente que ainda sejam tão ouvidos.
Todos os índices econômicos relevantes de um país são medidos em relação ao PIB. Isso significa que é preciso fazer o país crescer. Reformas para simplificar e modernizar o sistema tributário são bem vindas e necessárias. Reformas para modernizar e fortalecer o direito do trabalho, idem.
Mas será preciso também ampliar despesas com educação, saúde, infra-estrutura e programas sociais, porque essa é a fórmula universal, desde Keynes, usada por todos os países que se desenvolveram, para tirar uma economia da estagnação e estabilizar o crescimento econômico no médio e longo prazo.
Lula sabe disso, e seu discurso indica que seguirá por esse caminho.
Quanto ao mercado, seus representantes mais inteligentes sempre encontrarão alguma maneira de faturar.
Possivelmente, alguns investidores abutres ou mal intencionados, que preferem sempre lucrar com a miséria, tomem a decisão de sair do Brasil. Mas muitos outros se sentirão atraídos pelas novas perspectivas que se abrirão num das maiores economias do mundo.
Publicado originalmente no blog “O Cafezinho”.