SE UM HOMEM vive onde estão seus livros, meu lugar é São Paulo, embora aqui em Londres eu já tenha montado uma biblioteca respeitável. A oferta de livros em Londres é inacreditável, antigos, novos, em capa dura ou em paperback. Se não bastasse, há um sebo na esquina de casa. Livros a uma libra lá, às vezes duas, e bons. Alguns, raros, são mais caros. Comprei uma biografia de Napoleão, de um renovador do gênero, Emil Ludwig, por 20 libras, uns 60 reais. É uma obra de 1925, notável.
Trouxe uns poucos livros de São Paulo, em minha recente passagem por lá. Um deles, sei lá por que, é uma biografia de Machado de Assis pela crítica literária Lúcia Miguel Pereira, morta já há algumas décadas. Chama-se apenas “Machado de Assis”, e se eu não soube a razão pela qual o enfiei na mala, depois de relê-lo, com décadas de intervalo, me sinto amplamente recompensado.
Não creio que exista outro livro que mostre com mais agudeza Machado como homem e escritor. “O livro de Lúcia Miguel Pereira veio nos revelar um Machado de Assis que está todo nos seus livros, nos seus contos, nos seus romances”, escreveu José Lins do Rego. “Mas até Lúcia Miguel Pereira ninguém sabia disso.”
Meu exemplar traz anotações minhas de décadas atrás. É um hábito que eu deveria ter mantido. Recomendo a todos. Quando você revê um livro, as placas estão todas lá, e o aproveitamento é melhor.
Em relação ao escritor, Lúcia defende a tese de que Machado foi melhor como contista do que como romancista. Meu pai, machadiano, várias vezes me chamou a atenção para a qualidade dos contos de Machado, como O Alienista, a Cartomante e a Teoria do Medalhão, entre tantos outros. Eu próprio tenho um conto favorito, que li dezenas de vezes, Um Capitão de Voluntários, o relato de um caso de amor e traição, honra e morte, no tempo da Guerra do Paraguai. O narrador tem um caso fugaz com a mulher de um homem que ele admirava, e este decidi, desiludido, se alistar como voluntário na guerra, onde tem uma conduta heróica e suicida. O traidor é tomado por — como gosto dessa frase — “um remorso que não é grande senão por me fazer sentir pequeno”.
Mas é no romance, para mim, que Machado se agiganta e não deve nada a qualquer romancista em todo o mundo e em todos os tempos. É com o romance que o escritor ergue suas pirâmides, para usar uma expressão de Guimarães Rosa, não com contos. Dom Casmurro, Braz Cubas e Quincas Borba cabem em qualquer seleção de clássicos que você tem que ler e reler. Mas ele foi bom em tudo, incluído aí o ofício de crítico literário.
Revejo minhas anotações e gosto delas.
Uma conversa numa festa mostra a presença de espírito de Machado. Ela está falando desenvoltamente quando uma mulher da sociedade observa: “Tinham me dito que o senhor é gago, mas é menos do que me disseram.” Machado responde: “Pois tinham me dito que a senhora é estúpida, mas é menos do que eu imaginava.”
Uma outra passagem me chama a atenção para o homem que foi Machado. O respeito que ele inspirava. Como crítico, Machado devastou O Primo Basílio, de Eça, seu grande contemporãneo português. A única coisa que se extraía do livro, segundo ele, era que para a “paz no adultério” era vital ter uma empregada confiável. A heroína do livro, Luiza, foi chantageada cruelmente por sua criada depois de se entregar a seu primo quando o marido viajava. Machado usou “fâmulos”, uma palavra sonora e infelizmente extinta. Significa criadagem.
É talvez a melhor crítica jamais escrita no Brasil. A mais aguda, a mais contundente, a mais sagaz.
E releio no grande livro de Lúcia Miguel Pereira — procuro no Google sinais de que tenha sido reeditado recentemente, e lamento não encontrar nada — que quando Eça teve problemas de direitos autorais no Brasil, por conta de editores inescrupulosos, encarregou de representar seus interesses ninguém menos que o crítico que massacrara uma de suas obras capitais.
É um episódio que conta muito de dois escritores portentosos — e destacá-lo é um dos muitos méritos do livro de Lúcia.