A declaração do general da reserva Eduardo Villas Boas de que Emmanuel Macron ameaçou a soberania brasileira ao defender reunião de emergência do G7 para adoção de medidas contra Brasil não tem fundamento jurídico.
Pode ser interpretada como uma jogada política para tentar mobilizar a sociedade contra países estrangeiros que estão defendendo o interesse que deveria ser também o do governo federal: a preservação ambiental.
Dificilmente, vai prosperar, já que a proteção das florestas é também uma preocupação dos brasileiros, conforme demonstram todas as pesquisas sobre o tema já realizada. Nessa questão, os brasileiros se identificam muito mais com Macron do que com Bolsonaro.
A última pesquisa sobre o tema, realizada entre os dias 14 e 16 de agosto com mil entrevistados em todas as regiões do país, apontou que 88% dos brasileiros consideram preocupante o desmatamento ilegal da floresta.
Para 84%, preservar a Amazônia é fundamental para a preservação da identidade nacional.
Até os eleitores de Bolsonaro defendem o aumento da fiscalização para combater o desmatamento ilegal. É posição de 96% deles.
Bolsonaro, no entanto, foi no sentido contrário desde que se elegeu. O alvo dele é a fiscalização do Ibama,
Em junho, durante discurso em uma feira agropecuária em São Paulo, contou que estava fazendo “uma limpa” no Ibama.
“Uma das medidas tomadas e estudadas com ele [Salles] é fazer uma limpa no Ibama e no ICMBio”, afirmou, sob aplauso dos muralistas presentes.
Desde que ele assumiu, conforme revelou reportagem da revista Veja, os fiscais do Ibama estão sendo hostilizados, principalmente na região amazônica.
“O discurso antiambientalista do governo Jair Bolsonaro tem sido utilizado por exploradores da Amazônia para intimidar agentes de fiscalização do Ibama. ‘Eles estão se sentindo empoderados agora’, disse um fiscal que trabalha há mais de 15 anos no órgão. As hostilidades vindas de grupos ilegais de madeireiros, garimpeiros e grileiros não são nenhuma novidade, mas passaram a ser mais contundentes neste ano”, diz
Sem segurança, os fiscais deixaram de ir até algumas regiões da Amazônia.
O discurso de Bolsonaro favorece setores com os quais ele tem ligações políticos, como mineradores, incluindo garimpeiros, madeireiros e produtores rurais.
Mas, apoiado por personalidades como o general Villas Boas, Bolsonaro confunde os conceitos, tudo indica que propositalmente.
Invoca o princípio da soberania para defender empresas e empresários em busca de riqueza, ainda que à custa da preservação ambiental e do direito dos povos indígenas.
Para a professora Larissa Ramina, da cadeira de Direito Internacional da Universidade Federal do Paraná, a soberania brasileira não está ameaça.
Leia os principais trechos da entrevista que ela concedeu ao Diário do Centro do Mundo.
DCM – A declaração de Macron representa ameaça à nossa soberania?
Larissa – A declaração do Macron de convocar o G7 para discutir a queima da Amazônia não configura, por si só, uma violação da soberania.
DCM: Por quê?
Larissa: Uma das facetas da soberania é territorial. O Brasil tem, claro, soberania sobre a Amazônia brasileira. Não há a menor dúvida em relação a isso. Mas o que configuraria uma violação da soberania brasileira seria alguma manifestação no sentido de uma intervenção no território mesmo, uma ameaça de invasão territorial. Uma declaração reconhecendo a destruição da Amazônia e a discussão de medidas pelo G7 não configurariam uma violação da soberania.
DCM: E se o G7 adotar sanções contra o Brasil?
Larissa: Sanções econômicas eventualmente adotadas pelo G7, como suspensão de importação da carne, como sugeriu um líder, também não pode ser considerada violação da soberania.
DCM: No plano internacional, que país poderia exigir medidas por parte do governo brasileiro?
Larissa: Há um tratado internacional, o Tratado de Cooperação Amazônica, o TCA, que é menos conhecido do que deveria ser, que é de 1978. Ele foi assinado em Brasília pelo Brasil, Venezuela, Bolívia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Colômbia, que são estados que têm parte do território na Floresta. Esse tratado daria legitimidade aos estados-parte de fazer algum tipo de cobrança, aí com base no direito convencional, porque esse tratado estabelece todo um sistema de cooperação com vistas à conservação da Amazônia e, nos temos desse tratado, há um compromisso de que todos os estados trabalhem no sentido de conservar os recursos da flora e da fauna, de prevenir e controlar eventuais danos ao território e há um sistema estabelecido de troca de informações sobre as medidas conservacionistas que cada estado adote nos seus territórios amazônicos. Esses são países que podem adotar, legitimamente, providências para evitar a devastação.
DCM: A Amazônia pode ser considerado território internacional?
Larissa: Não. Uma questão importante a ser observada nesse caso é a conservação da biodiversidade, que é considerada uma das mais importantes preocupações que concernem a todos os países e, portanto, à humanidade, que foi tema de discussão na famosa conferência do Rio de Janeiro, a Eco-Rio 92, quando foi adotada a convenção sobre a diversidade biológica. Antes disso, em 1972, já havia sido adotada uma conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente humano, em que foram definidas normas internacionais dedicadas à questão ambiental. Houve nesse momento a formação de todo um campo do direito internacional, que a gente costuma chamar de direito internacional do meio ambiente, onde foi criada uma teoria sustentando que a Amazônia, por conta de toda importância que ela tem, não só para o Brasil, mas em relação ao mundo, ela seria de extrema importância para a própria sobrevivência do homem e, por isso, ela seria tirada do âmbito da soberania de um único estado ou de um estado específico porque ela deveria se tornar um patrimônio comum da humanidade.
DCM: Então, existe fundamento para o Bolsonaro dizer que a Amazônia não é do Brasil.
Larissa: De jeito nenhum. Parece que o Jair Bolsonaro deve estar com isso no pensamento, mas não tem fundamento. Pela teoria exposta e 1972, nenhum país específico teria soberania sobre a Amazônia, assim como o espaço extra-atmosférico, o fundo do mar, o alto mar, a Antártica. Nesses casos, há tratados que definem como patrimônio da humanidade, o que não é o caso da Amazônia. Na época, houve uma discussão e mencionaram-se vários outros espaços que também deveriam se tornar patrimônio da humanidade, inclusive nos Estados Unidos e Europa. Então, concluiu-se que essa teoria seria absurda e, portanto, ela não vingaria.
DCM: Isso, portanto, já foi superado…
Larissa: Sim. Na Eco-Rio, houve um consenso entre os países no sentido de reafirmar a soberania nacional perante seus recursos naturais, separando a questão da soberania com a questão da preservação dos recursos naturais. Então o que se fez, juridicamente, separar a questão da soberania territorial da preservação e da situação de patrimônio comum da humanidade. Então, consolidou-se que a preocupação com a preservação ambiental não é mais uma questão interna de um único país ou de alguns países, mas que ela é preocupação de toda a comunidade internacional. Nós chamamos isso de um interesse comum da humanidade na preservação ambiental, até por conta do risco que a destruição ambiental causaria à sobrevivência da sobrevivência da espécie humano. Fazendo uma síntese: a Amazônia representa uma riqueza enorme e a sua preservação deve ser sempre objeto de interesse de toda comunidade internacional, deve ser preservada, deve ser defendida, mas a exploração dessa riqueza e soberania são dos estados em cujo território se encontre. Uma coisa é a preocupação com a floresta, outra é a reivindicação dessa soberania por um eventual interesse da comunidade internacional. Isso está fora de cogitação.
DCM: O que os países poderiam fazer diante da ameaça de Bolsonaro à Amazônia?
Larissa: Qualquer país poderia romper relações diplomáticas com o Brasil, em sinal de protesto pela violação ao patrimônio amazônico, suspensão de relações comerciais. É o que chamamos de boicote ou embargo. Boicote é quando não se compra nada daquele país. Embargo é quando não se vende nada para aquele país. Cada país poderia avaliar sua relação comercial com o Brasil e, a partir daí, romper essa relação. Sabemos que essa interrupção total é impraticável muitas vezes. Então se impõe o contingenciamento, que seria a redução da quantidade de um produto. São medidas legítimas.
DCM: Bolsonaro poderia ser acusado de crime contra a humanidade?
Larissa: É complexo. Não existe hoje um tribunal internacional para julgamento de questões ambientais. Portanto, não existe esta jurisdição específica. O Tribunal Penal Internacional, que foi criado em 98 pelo estatuto de Roma, é vocacionado a julgar crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e de agressão. Recentemente houve um pronunciamento do próprio TPI no sentido de que o tribunal passaria a julgar crimes ambientais. Esse documento foi feito pelo gabinete do procurador do TPI no sentido de que a corte passaria a se preocupar com crimes relacionados à destruição do meio ambiente, à exploração de recursos naturais, apropriação ilegal de terras, aí fazendo alusão às questão da expulsão dos povos indígenas.
DCM: Já está em vigor?
Larissa: Não. Existe desde 2010 uma discussão no sentido de alterar o estatuto do TPI para adicionar um novo tipo penal, que seria o do ecocídio, que literalmente significa morte da terra, com base na ideia de que essa crise ambiental e todas as suas consequências, principalmente em relação à mudança climática, representam uma ameaça real aos próprios limites planetários. Esse novo tipo penal ainda não existe de fato.
DCM: Bolsonaro poderia ou não ser acusado de crime contra humanidade?
Larissa: Para que houvesse a caracterização desse desmatamento — e não só desmatamento, mas da ausência do governo de delimitar as terras indígenas — como crime da humanidade, teria que manobrar juridicamente todos esses fatos. Mas eu não conheço nenhum precedente em relação a isso.
DCM: Nenhum?
Larissa: Há um caso que foi submetido ao TPI, se não me engano em 2014, de ocupação de terras florestais no Camboja. Parece que o governo havia adotado uma série de medidas de desapropriação ilegal das terras e isso teria gerado uma destruição ambiental significativa no país e aí acusação fez toda argumentação jurídica no sentido de comprovar que essas medidas de desapropriação ilegal poderiam ser enquadradas nessa ideia de crime contra a humanidade. Mas ainda não há uma sentença.