Este é um de meus textos favoritos de papai. Foi escrito em abril de 1973, e conciliava a língua portuguesa, objeto de sua coluna na Folha, com um olhar de imenso amor por sua mãe, minha avó Alice, que acabara de morrer.
É uma prosa machadiana, a marca de papai como redator: econômica e precisa, sem ser seca.
Algumas pequenas coisas desde logo me pareceram grandes quando li este artigo, aos 17 anos. A maneira elegante como papai escreve “minhas irmãs e eu” é uma lição de etiqueta de estilo. Num mundo tão auto-referente, todos costumamos usar a ordem inversa, que no caso seria “eu e minhas irmãs”.
Vó Alice foi a maior figura da vida de papai. Era uma costureira de Cravinhos, simples, com pouca escola – mas de extraordinária sabedoria e inteligência. Aplicou-se com afinco à educação dos filhos, pois sabia que era a melhor maneira de garantir a eles um futuro melhor.
Papai entrou (em primeiro lugar, modéstia à parte) na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde conheceria mamãe. Quando ele ia a Cravinhos, era difícil enfrentar a perspectiva de voltar à cidade grande e áspera. Vovó o levava à rodoviária com uma firmeza da qual papai se lembraria sempre. Não fosse isso, ele provavelmente teria seguido a vida em Cravinhos.
Vovó tinha recursos limitados. Pôde fazer um casaco para papai. Escolheu a cor marrom, porque exigiria menos lavagem e, consequentemente, o casaco duraria mais. Era outra lembrança que encantaria papai para sempre.
Digitei pessoalmente este texto. Claro que minha memória correu para minha própria mãe, morta há alguns meses. Tenho a imagem sorridente de mamãe na tela de fundo de meu celular. É uma foto que eu tirei, e na qual ela me olha com o amor de sempre, e isso me faz bem.
Lembrei também de minhas tias, Lili, Teté e Terezinha, que dividiram com papai a perda de vó Alice. E de meu avô Itamar, cuja ausência vovó não suportou, num dos raros casos de amor continuado que vi em toda a minha vida.
Também me ocorreram meus irmãos, Mari, Zé, Kiko e Kika. Partilhamos a dor de enterrar mamãe, e isso tornou para cada um de nós menos opressiva essa tarefa tão difícil.
E acima de tudo me veio papai, Emir Macedo Nogueira, de quem sinto falta cada dia desde que ele morreu em 11 de setembro de 1982 como o filósofo que foi – sem se queixar da sorte uma única vez. Olhando em retrospectiva, minha vida se divide em duas – com papai e sem papai. Aos 26 anos, quando meu pai morreu, eu seria tomado por um sentimento de permanente orfandade que o tempo mitigou mas não foi capaz de destruir.
Mãe
Que tratamento (gramatical) dispensar à própria mãe?
Não há dúvida de que o mais adequado é o desinibido e espontâneo você, como convém entre pessoas que se amam, e cujas relações devem ser as mais abertas, francas, íntimas possíveis.
Na tradição familiar brasileira, entretanto, até bem pouco tempo atrás, mãe era, para o filho, “a senhora” (como o pai, “o senhor”). Por uma questão de hábito, esse tratamento subsiste, em numerosas famílias, mesmo depois de superado o ridículo preconceito de que tratar a mãe por você seria “falta de respeito”.
Quando vão surgindo os netos, é comum, em muitos círculos familiares, chamar a mãe de vó, dirigindo-se a ela, ou de vovó, falando dela. É a maneira de os pais procurarem se identificar com os filhos, usando a linguagem destes.
A “velha” passa a ser também carinhosa forma de referência à mãe, quando esta avança em anos.
A vovó estava muito doente, sabiam as crianças, em casa.
No começo da semana, minha velha morreu.
Minhas irmãs e eu, confortados por parentes e amigos, levamo-la para repousar ao lado do nosso velho.
A senhora estava linda no caixão, mãe, com as feições serenas de quem encontrou a paz, depois de meses de muito sofrimento.
Mas que saudade.