Publicado originalmente no site da RFI
POR MÁRCIO RESENDE
Declaração de cinco anos atrás aconteceu durante encontro em Buenos Aires, cidade que assiste agora às primeiras homenagens ao criador da argentina mais famosa, contestatária e feminista do mundo.
Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino, deixou de publicar a sua mais famosa tira em 1973 porque, como explicou à RFI, sentia que se repetiria na temática porque todos os assuntos abordados continuam vigentes.
“Ao olhar para as coisas que fiz há tantos anos, percebo que os problemas que me preocupavam continuam sendo os mesmos e que continuaria a dizer as mesmas coisas. E como já as disse, a Mafalda não precisa reaparecer. Os problemas no mundo continuam os mesmos e o que ela teria a dizer, já foi dito”, disse Quino com uma explicação que valia também para entender como a personagem continuava atual.
Mas, se Mafalda reaparecesse, falaria com os adultos e daria um recado que nunca foi tão vigente: protejam a Amazônia. “A Mafalda tentaria chamar a atenção do público para problemas que todos temos de resolver como a destruição da Amazônia”, afirmou.
E seria a Mafalda quem mais credibilidade teria para o apelo não só porque falava com os adultos, mas porque representaria as futuras gerações. “As crianças sentem naturalmente as coisas, a necessidade de fazerem as coisas certas, principalmente com a natureza, mas os adultos estão cada vez mais ignorantes”, sentenciava Quino.
A conversa aconteceu durante um encontro entre a Mafalda e a Mônica em abril de 2015, quando Mauricio de Sousa veio a Buenos Aires para festejar os 50 anos da Mônica que já tinha então 52 anos. A brasileira conheceria a sua amiga argentina que havia completado 51 anos.
Democracia, feminismo, igualdade
Se a Amazônia já era uma preocupação da Mafalda há cinco anos, agora seria ainda mais. Essa capacidade de falar sobre temas atemporais revela não apenas a visão aguda de justiça que permeou o ilustrador argentino, mas a incapacidade da humanidade de não voltar a tropeçar na mesma pedra.
Na sua célebre coleção de dez livros que reúnem as 1.928 tiras da Mafalda, publicadas entre 29 de setembro de 1964 e 25 de junho de 1973, diversas continuam vigentes e serviriam para atuais governos populistas tanto de esquerda quanto da extrema direita.
Numa das tiras do décimo livro, Mafalda brinca de adivinhar o formato das nuvens que observa no céu. Ao acompanhar uma que simplesmente desaparece na atmosfera, conclui que tem o formato de “ideais democráticos”.
“Por razões de timidez, não são aceitas entrevistas de nenhuma índole”
Quino deixou de desenhar a Mafalda em 1973 e não desenhava mais nada desde 2008. “Até logo, amigos”, despedia-se do humor gráfico, depois de publicar 16 livros com personagens que não se relacionavam com Mafalda. No entanto, seria para sempre “o pai da Mafalda”, título que rejeitava porque Mafalda tinha um pai nos quadrinhos.
Quino andava numa cadeira de rodas, evitava atos públicos e praticamente não dava entrevistas. Na verdade, nunca gostou de entrevistas nem mesmo de falar, razão pela qual escolheu desenhar. “Por razões de timidez, não são aceitas entrevistas de nenhuma índole”, anunciava um cartaz no seu ateliê.
Mafalda nasceu em 1962 a partir de uma frustrada campanha publicitária para vender eletrodomésticos para a mulher moderna. A campanha nunca foi publicada, mas a pequena ganharia vida depois e, ao contrário da sua origem para vender aparelhor para o lar, seria uma feminista à frente do seu tempo. O movimento de libertação feminista estava em vigência nos anos 60 e agora, 60 anos depois, continua a querer derrubar muros.
Em Buenos Aires, uma praça homenageia o artista, mas é na esquina das ruas Chile com Defensa, no bairro de San Telmo onde Quino morou, que centenas de admiradores passam por estas horas a deixar bilhetes e flores. Quino pode não estar, mas Mafalda, Manolito e Susanita, estão aqui para mostrar que nunca estiveram tão vivos.