PUBLICADO NO CONJUR
POR TIAGO ANGELO
A advogada Viviane de Souza das Neves foi obrigada a se submeter a revista íntima para atender um cliente detido no centro de Triagem de Marambaia (PA). Esse é ao menos o segundo caso do tipo ocorrido no presídio paraense desde que a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) editou portaria alterando as regras de visita carcerária.
Segundo o boletim de ocorrência, registrado na Divisão de Crimes Funcionais da Corregedoria da Polícia Civil, a advogada “foi chamada por uma agente e levada para o banheiro, sendo pedido para que a relatora [a advogada] tirasse a roupa, abaixando a sua calça e blusa”. O documento foi registrado na terça-feira (11/2), mesma data em que aconteceu a revista.
Ainda de acordo com o B.O., ao entrevistar seu cliente, não foi permitido que a profissional se reunisse “reservadamente com o mesmo, tendo um agente penitenciário ficado sentado em uma cadeira com a porta aberta”.
As medidas foram tomadas com base na Portaria nº 164/20, editada pela Seap e publicada no Diário Oficial do Pará em 10 de fevereiro, um dia antes de Viviane ser revistada.
Entre outras coisas, a norma estadual determina, em seu parágrafo 5º, que o advogado seja “submetido a todos os procedimentos rotineiros de revista, os quais já são realizados, indistintamente, em todas as autoridades”.
A própria portaria estabelece, em seu artigo 2º, que “os advogados terão acesso às Unidades Prisionais para realização de entrevista reservada e pessoal com seus clientes, mediante apresentação da carteira de identidade expedida pela Ordem dos Advogados do Brasil e mediante agendamento eletrônico”.
Outras limitações
O regramento também limita o tempo dos atendimentos.”O advogado deverá atender um preso por vez, podendo esse atendimento ser de até 20 minutos. O tempo total de permanência do advogado em entrevista poderá ser de até uma hora, independente (sic) da quantidade do custodiado/cliente que irá atender”, diz o parágrafo 4º .
Com isso, caso o advogado precise ver mais de um cliente na mesma unidade prisional, ele deverá dividir o tempo máximo de uma hora entre eles, não podendo ultrapassar 20 minutos com cada um.
Segundo caso
Esse é o segundo caso em que uma advogada tem que se submeter a revista íntima. No mesmo dia, Milene Serrat Brito dos Santos também foi alvo do procedimento para poder atender um cliente.
O boletim de ocorrência registrado por ela é bastante semelhante com o feito por Viviane. Segundo o documento, “a advogada não concordou com o procedimento, entretanto, dada a necessidade de entrevistar seu cliente, que não possui parentes na Cidade de Belém, tendo em vista que o mesmo reside em São Sebastião da Boa Vista, falou que iria se submeter à revista”, afirma o registo.
A mulher teve que abaixar a calça até a altura dos joelhos e levantar a blusa. Ao sair do local, foi informada que todos os advogados terão que passar por revista por determinação do chefe da Seap, Jarbas Vasconcelos do Carmo.
Serrat também não conseguiu falar com seu cliente de forma reservada. Durante a entrevista, de acordo com o boletim, agentes permaneceram na porta, que ficou aberta durante toda a conversa.
“Estamos sendo hostilizados”
À ConJur, Viviane afirmou que portarias como essa estão sendo adotadas desde que Jarbas assumiu a Seap, em janeiro de 2019. “A gestão começou a afetar diretamente as pessoas custodiadas, as famílias das pessoas custodiadas, e aqueles que frequentam as unidades prisionais, que são os advogados criminalistas”, diz.
“Não estamos mais conseguindo entrar no presídio a hora que a gente precisa, não conseguimos mais ter entrevistas com nossos clientes de forma pessoal e reservada, estamos tendo que nos submeter à revista. Estamos sendo hostilizados, tratados como braços das facções, como criminosos”, prossegue.
Intervenção
O livre acesso aos clientes foi paralisado após o Ministério da Justiça e Segurança Pública, pasta chefiada por Sergio Moro, atender solicitação do Executivo estadual e autorizar o emprego da Força-Tarefa de Intervenção (FTIP). A advogada conta, no entanto, que os atendimentos já haviam sido restabelecidos.
No final de 2019, o Ministério Público Federal precisou intervir para atenuar a situação. A instituição ajuizou uma ação civil pública para suspender a incomunicabilidade dos presos e permitir o acesso de advogados.
Em setembro do ano passado, foi celebrado um acordo permitindo visitas de advogados, ações de fiscalização do Conselho Penitenciário do Pará (sem agendamento prévio), da OAB, do MPF, da Defensoria Pública do Estado e da União. Com a Portaria 164/20, no entanto, o atendimento dos profissionais do Direito volta a ser dificultado.
O advogado Jarbas Vasconcelos assumiu a Seap em 2 de janeiro de 2019. Anteriormente, o órgão era uma autarquia chamada Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará (Susipe). Jarbas é ex-presidente da Comissão Nacional de Prerrogativas e Valorização da Advocacia do Conselho Federal da OAB
Inconstitucionalidade
De acordo com a constitucionalista Vera Chemin, a Portaria 164/20 possui “vícios de ilegalidade flagrantes”. Isso porque é garantido aos advogados o direito a entrevista reservada e o ingresso livre do profissional nos centros de detenção.
“Com relação à revista íntima, o artigo 7, inciso IV, alínea ‘b’, da Lei 8.906/94 (Estatuto da OAB), prevê claramente que o advogado pode ingressar livremente nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios de justiça, serviços notariais e de registro, e, no caso de delegacias e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independente da presença de seus titulares”.
A garantia de entrevista reservada, explica, consta no artigo 7º, III, da mesma lei. De acordo com a norma, é direito do advogado “comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis”.
Para Chemin, “a referida portaria contém ilegalidades do ponto de vista material e necessita ser questionada pela via legal competente para declarar a nulidade de alguns de seus dispositivos e corrigir a sua redação, de modo a atender aos diplomas legais e à Constituição Estadual e, por óbvio, Federal”.
Ofensa à dignidade humana e profissional
O Conselho Federal da OAB, em conjunto com a seccional do Pará, informou que irá adotar “uma série de medidas administrativas e judiciais” para restabelecer o direito de entrevista reservada entre advogado e cliente.
“O Conselho Federal da OAB tomou conhecimento e já instaurou, em razão das duas advogadas, processos de desagravos. O desagravo tramita no Conselho Federal e será estendido para todos os casos semelhantes no Brasil. Não se pode admitir que uma mulher, para exercer a advocacia, seja obrigada a se despir perante uma autoridade, por ofensa à dignidade humana e profissional”, afirmou Alexandre Ogusuku, Presidente da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas e Valorização da Advocacia da OAB.
Ainda segundo ele, a entidade entende que, no Pará, há “casos de grande violência nos presídios”. No entanto, diz, “não se pode admitir um modelo que impeça o exercício do direito de defesa do cidadão, realizado pela advocacia. A portaria, ao proibir o exercício da advocacia, fere o direito de defesa do cidadão”.
Procurada, a Seap não respondeu aos questionamentos feitos pela ConJur.