Marco Aurélio X Fux: “Ao olhar para o acusado, a Justiça se cega para as leis”, diz especialista

Atualizado em 12 de outubro de 2020 às 1:14

Por André Lozano Andrade

Marco Aurélio Mello e Luiz Fux. Foto: Wikimedia Commons

Dizem que a Justiça é cega, pois o juiz não pode ter os olhos no acusado ou na vítima quando decide, deve se atentar ao fato que julgar. Da mesma forma que o juiz não pode beneficiar o acusado devido a condições pessoais para lhe conceder benefícios, também não poderá retirar garantias ou direitos sob o pretexto de ser um malfeitor ou bandido. Isso significa que o Direito deve ser aplicado da mesma forma para todos os cidadãos, independentemente de quem seja a pessoa do réu.

A partir do Mensalão, não se pode dizer que a Justiça seja cega, ela cada vez mais vê aqueles que julga e, ao vê-los, afasta-se do Direito. Foi com o Mensalão que a Themis brasileira começou a ouvir os urros da turba enlouquecida, que bradava por punições e perseguições aos poderosos. Ao ouvir a opinião pública ou opinião publicada, a Themis brasileira também deixou de lado o véu que a impedia de ver as diferenças dos acusados, que servia para aplicar o Direito de forma igualitária, sem distinções. O problema é que quando se olha para o acusado, geralmente se cega para as leis.

No momento em que as partes se tornam mais importantes para a Justiça do que a aplicação do Direito, as injustiças irão acontecer. Se o juiz passa a se importar com quem é o autor ou o réu (o acusado ou a vítima), os tribunais deixarão de aplicar o Direito, passando a conceder benefícios ou retirarem direitos, arbitrariamente.

É importante dizer que aquela turba que bradava contra a corrupção e pela punição dos poderosos não queria a punição dos poderosos, mas apenas daqueles que haviam investido no combate à miséria e proporcionaram independência à Polícia Federal e ao Ministério Público, para que esses pudessem investigar a processar políticos e empresários envolvidos com corrupção. A Justiça, ao ouvir essa turba, também foi seletiva, sendo impiedosa e autoritária com uns e leniente com outros. Não se julgava fatos, mas pessoas. Foi assim no Mensalão, na Lava-Jato e é assim no dia-a-dia dos tribunais, quando a pecha de criminoso, assassino, estuprador ou corrupto é mais importante do que os fatos trazidos, as provas angariadas ou a lei a ser aplicada.

Ao olhar para o acusado, a Justiça perde a sua razão de ser, deixa de ser um Poder técnico, que se equilibra e, por vezes, impede abusos dos Poderes Executivo e Legislativo, para ser apenas mais um instrumento político que comete arbítrios em nome de uma suposta opinião pública. Esquece-se que o Poder Judiciário, diferente dos demais, que são poderes exercidos por políticos, é um poder técnico. É técnico justamente porque deve ser um limitador aos possíveis excessos desejados por setores da sociedade, sua função não é implementar políticas públicas ou garantir a segurança, mas frear arbitrariedades. O Poder Judiciário tem por função garantir direitos e limitar abusos que possam ser cometidos pelos demais poderes e, também, por setores econômicos. Sua vocação contramajoritária não pode ser esquecida, do contrário não haverá razão de ser.

Alguns setores da mídia, ou por ignorarem a real função do Poder Judiciário ou por interesses políticos e mercadológicos, buscam influenciar cada vez mais os tribunais do país, impondo ao Judiciário o combate ao crime, a aplicação de política criminal, e exigem que seja rigoroso com criminosos (muitos dos supostos criminosos sequer condenados). Tem como um Judiciário ideal não aquele que preserva direitos e garantias, mas o que se alia ao Poder Executivo para perseguir e impedir que esses direitos e garantias sejam utilizados pelo acusado. O grande problema é que o Poder Judiciário cada vez mais dá atenção a essas vozes e se coloca como guardião da opinião pública, mesmo que essa opinião contrarie o Direito.

Quando o Judiciário olha para o acusado e não para os fatos e provas, dá-se início a um Direito Penal do Inimigo, no qual não importa mais se a pessoa realmente praticou o fato, e sim que se puna, não se as leis serão respeitadas, se o Direito será aplicado. 

O ministro do STF Marco Aurélio Mello cometeu o “erro” de olhar para o Direito, de exigir a aplicação da lei. Chegou às suas mãos um caso em que não se justificava a necessidade da manutenção da prisão preventiva no prazo de 90 dias, determinado pela lei. Não cabia ao ministro Marco Aurélio verificar quem era o acusado ou quais eram os crimes imputados. Cabia apenas corrigir a omissão criminosa de um membro do Judiciário da instância inferior, cuja decisão tinha sido alvo de recurso que passava a ser apreciado pelo ministro. Talvez o desembargador da referida instância tenha olhado para o acusado e, por trata-lo como inimigo, acreditado que poderia deixar de seguir a lei, que o acusado não teria os direitos de um cidadão comum e, por isso, achou que justificar a imposição de uma prisão preventiva seria algo supérfluo, sem necessidade, afinal não estamos falando de uma pessoa, mas de um inimigo. Marco Aurélio Mello não olhou para o acusado, mas aplicou o Direito. A prisão era claramente ilegal, e prisões ilegais devem ser revogadas.

Marco Aurélio Mello não deve ter ouvido o ministro Luiz Fux dizer que o STF deveria “se ajustar ao sentimento constitucional do povo”, ou seja, que deve abrir mão da vocação contramajoritária de proteção de minorias e de garantidor de direitos para garantir julgamentos que agradem setores da população. Com isso, pouco depois de um julgamento baseado em lei, Fux, contrariando todas as normas e princípios jurídicos, revogou a decisão de Marco Aurélio.

Obviamente, sobraram críticas ao Marco Aurélio. Setores da imprensa se indignaram com a decisão de soltar um criminoso perigoso, mas não teceram qualquer crítica àquele que não justificou a necessidade da manutenção da prisão, o que tornou a prisão arbitrária e, por esse motivo, foi revogada. Se há um culpado pela soltura de um dos líderes do PCC. é aquele que foi omisso e descumpriu a lei ao não justificar a necessidade da prisão preventiva.

Como era de se esperar, alguns setores da imprensa trataram de atacar a lei, alegando que a necessidade de justificar uma prisão preventiva periodicamente seria um incentivo à corrupção. São jornais e articulistas que se dizem indignados com fake news, mas não cansam de propagá-las quando conveniente. Dizer que essa lei beneficia a corrupção é uma mentira comparável com a alegação de que o PT distribuía kits gays nas escolas. Uma lei que obriga o juiz a justificar a necessidade da prisão periodicamente incentiva o controle do Poder Judiciário, busca impedir abusos de poder contra cidadãos e manutenção de prisões desnecessárias. 

Não surpreende que um dos jornalistas que tenha bradado contra a lei seja Josias de Souza, um admirador de Sergio Moro, que quando era juiz agia como inquisidor e quando esteve à frente do Ministério da Justiça garantiu que a Polícia Federal não seria tão atuante quanto foi nos governos Lula e Dilma, além de tentar implementar leis que seriam bem vindas na Idade Média ou na Alemanha nazista. Sergio Moro era contrário a todo e qualquer controle realizado sobre a polícia, Ministério Público e Judiciário, motivo pelo qual foi contrário a um dispositivo que busca garantir mais controle sobre as decisões judiciais. 

Josias de Souza, em diversas ocasiões, falou dos estragos feitos à economia nos governos do PT, mesmo com os índices econômicos mostrando o contrário. Também é comum que compare Lula e Bolsonaro, tratando-os como equivalentes de campos políticos opostos. Esquece-se que apesar de Lula poder ser chamado de populista, a depender do entendimento que esse termo tenha, sempre foi um democrata e o único radicalismo dele é com relação à implementação de mecanismos democráticos, enquanto Bolsonaro é um neofascista que despreza a democracia e homenageia conhecidos torturadores.

Ou seja, é alguém que não usa o jornalismo como meio de informação, mas como ferramenta de desinformação e arma política.

A imprensa, ao dar espaço privilegiado para pessoas que distorcem fatos, mina a democracia e, consequentemente, a própria liberdade de expressão e imprensa. Uma democracia não é apenas liberdade de expressão ou de imprensa, como alguns jornalistas e veículos de mídia pensam. Democracia é respeito à lei e, nesse ponto, o Poder Judiciário é fundamental, pois é ele a barreira contra o autoritarismo que pode vir do Poder Executivo ou do Legislativo.

A imprensa deve cobrar o Poder Judiciário, assim como faz com os Poderes Executivo e Legislativo. Porém, ao distorcer fatos e manipular a opinião pública para que se indigne com a aplicação da lei e com o respeito aos direitos e garantias fundamentais, está enfraquecendo a própria Democracia. 

André Lozano Andrade é advogado criminalista, professor de Direito Penal, membro da Comissão de Prerrogativas da OAB-SP e coordenador do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)