Publicado originalmente no Brasil de Fato:
Por Murilo Pajolla
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira no Brasil a reconhecer que os indígenas são os primeiros e verdadeiros donos das terras ocupadas por eles antes da chegada dos não-indígenas.
Pela Constituição, as terras indígenas são bens da União, que tem por obrigação promover a demarcação desses territórios em favor de seus habitantes tradicionais.
A demarcação é um processo administrativo complexo, que tem nove etapas, desde os estudos iniciais de identificação e delimitação do território, até a interdição de áreas para a proteção de povos indígenas isolados.
Assim, é direito dos indígenas exercer sobre essas terras a posse permanente e o usufruto exclusivo do solo, dos rios e todos os recursos naturais essenciais à manutenção de seus modos de vida.
Esse arcabouço de proteção aos povos originários, no entanto, nunca se concretizou plenamente.
A Constituição deu prazo até 1993 para que fossem demarcadas todas as terras indígenas, mas atualmente, há mais de 300 territórios que se encontram em situação jurídica indefinida.
Um marco no ataque aos direitos originários
Nesse contexto, a violência crescente sofrida pelos indígenas brasileiros poderia atingir novos patamares, caso o Supremo Tribunal Federal (STF) referende o chamado “marco temporal”.
O processo que volta a ser analisado pelos ministros nesta quarta-feira (1º) diz respeito à posse do território do povo Xokleng, de Santa Catarina.
Trata-se de uma ação de reintegração de posse movida em 2009 pelo governo do estado referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ.
Criticado severamente por organizações indígenas, o “marco temporal” é uma tese jurídica defendida por ruralistas que ergue novas barreiras à demarcação de terras dos povos originários.
Pelo “marco temporal”, os territórios só podem ser demarcados se os povos indígenas conseguirem provar que estavam ocupando a área anteriormente ou na data exata da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, ou se ficar comprovado conflito pela posse da terra.
“Muitos de fato não estavam nas suas terras nessa data porque foram expulsos, tiveram suas terras tomadas por fazendeiros”, aponta Samara Pataxó, assessora jurídica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
“Essa tese perversa desconsidera o histórico de violência a que foram submetidas as populações indígenas antes de 1988, bem como as ameaças e assassinatos que resultaram na expulsão das comunidades de suas terras”, complementa Antônio Eduardo Oliveira, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Genocídio continuado
Organizações e lideranças alertam que as consequências da validação pelo STF do “marco temporal” poderão aprofundar intensamente o processo de genocídio vivido pelos povos originários.
Mesmo comunidades que vivem em terras já demarcadas poderão ser expulsas, caso não consigam comprovar que ocupavam o território no período estabelecido pela tese jurídica.
Isso porque o Supremo classificou o julgamento do “marco temporal” como de repercussão geral.
Ou seja, será criada uma jurisprudência que servirá de base para julgar todos os casos semelhantes em outros tribunais, definindo o futuro das próximas gerações de indígenas brasileiros.
“Caso a tese seja referendada, teremos a paralisação das demarcações e teremos certamente pedidos de revisões de terras já demarcadas”, explica Paloma Gomes, assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Grileiros, madeireiros e garimpeiros, que veem nos territórios de indígenas uma fonte de lucro ainda inexplorada, podem ser ainda mais estimulados a adentrar as áreas preservadas, engrossando a já crescente estatística de conflitos fundiários.
“Nós teremos ainda mais a ausência de políticas públicas destinadas aos indígenas, teremos mais violência, mais expulsões dos povos originários.
Enfim, um processo de absoluto extermínio da cultura e dos povos indígenas no nosso pais”, complementa a advogada.
“Marco temporal” já está em prática
A tese foi usada pela primeira vez para questionar a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Em 2009, o Supremo determinou a demarcação contínua da TI e retirada da população não indígena, afastando a necessidade de os povos originários provarem que estavam lá em 1988.
“Embora a decisão tenha sido favorável aos indígenas, esse critério começou a ser aplicado de maneira indevida e descabida em outros processos de demarcação que não têm nenhum aspecto parecido com esse processo em específico”, explica Samanta Pataxó, da Apib.
Para se ter uma ideia do prejuízo que pode ser causado aos indígenas, basta observar os casos em que o “marco temporal” já serviu de base para decisões judiciais desfavoráveis aos povos.
Um exemplo simbólico é a Terra Indígena Guyraroka, do povo Guarani Kaiowá, no município de Caarapó, no sul do Mato Grosso do Sul.
Cercados pelo plantio de monoculturas como soja, milho e cana-de-açúcar, a comunidade formada por 26 famílias teve o procedimento administrativo de demarcação de sua terra anulado em 2014 pela Segunda Turma do STF com base no “marco temporal”.
Os Guarani Kaiowá obtiveram uma vitória judicial em abril deste ano, quando o próprio STF acolheu um recurso judicial e abriu caminho para reverter a anulação.
A vitória definitiva, no entanto, ainda não chegou, já que o mérito da ação não foi apreciado pelos ministros.
A recuperação do território pode ficar mais distante, caso o “marco temporal” seja aprovado.
Consequências climáticas
Apesar de os indígenas serem os principais interessados na rejeição do “marco temporal” pelo STF, o assunto é de interesse geral da sociedade brasileira.
Os povos indígenas são os principais responsável por evitar a degradação dos biomas brasileiros, principalmente da Floresta Amazônica, que tem batido recordes anuais de desmatamento, segundo um relatório das Nações Unidas publicado em março deste ano.
Os primeiros habitantes do Brasil são, portanto, aliados naturais da preservação ambiental, único remédio para contornar as graves mudanças climáticas pelas quais passam o planeta, como o aquecimento global e a grande concentração de gás carbônico na atmosfera.
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