Por Nathalí Macedo
O acidente que terminou na morte de Marília Mendonça e sua equipe na tarde de ontem não comoveu apenas seus fãs e amigos: um país inteiro dormiu mais triste, e ainda hoje não há quase nada além de tristeza e homenagens nas timelines da vida.
Acompanhei muitas condolências públicas de artistas e políticos progressistas, algumas delas com ressalvas do tipo “independente de gênero musical, o Brasil perde muito.” Perdoem a chatice fora de hora, mas isso soa como se desculpar por reconhecer o fenômeno Marília Mendonça simplesmente porque sua música se insere em um seguimento que, por tradição, tem aderência das massas e (muitas) ressalvas dos intelectualóides.
Não é necessário se desculpar: o fenômeno Marília Mendonça é inegável (e não é preciso gostar de sertanejo – nem ressalvar que não gosta – pra reconhecer isso: precisa só saber ouvir e ver).
Não apenas pelos recordes, que são muitos – maior live da história, meio bilhão de views e a artista mais ouvida dos últimos dois anos são apenas alguns -, mas por um traço que caracteriza de modo definitivo um grande artista: a capacidade de unir tribos.
De Gal Costa a Anitta, Marília Mendonça dividiu o palco com dezenas de artistas e exerceu influência na maioria dos gêneros musicais. Não é exagero dizer que sua morte uniu um país rachado: de rockeiros a sertanejos, de progressistas a bolsonaristas, pobres e ricos, homens e mulheres, todos sentiram em algum nível sua partida precoce.
Talvez seja essa a função mais urgente da arte em nossos tempos: unir. Furar as bolhas. E se alguém fez isso melhor do que ela, eu não pude ainda notar.
Quebrar tabus era também uma coisa que ela fazia muito bem. Inserida em um seguimento musical extremamente machista (talvez o mais machista de todos), não apenas ocupou seu lugar e construiu uma carreira maior do que qualquer homem no sertanejo, como também fez questão de demarcar sua condição de mulher.
Através de suas canções – e da arte que nos permite ser quantas quisermos – ela foi a mulher a traída, a amante, a cachaceira, a apaixonada, a que fala de sexo abertamente… como já foi dito, depois dela de alguma forma tornou-se mais fácil ser mulher. Ela nos deu o aval para que fôssemos, também, essas tantas.
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Morte de Marília Mendonça foi uma grande feminista de seu tempo
Embora nunca tenha usado esse rótulo – e precisa? – Marília Mendonça foi uma grande feminista de seu tempo. Compôs de um lugar em que nunca antes uma mulher havia composto em seu segmento: do lugar de sujeito. Porque, na tradição da música sertaneja, a mulher não é sujeito, é objeto – a musa, a que espera, a que se cala e se comporta de acordo à própria cultura que a produziu, mas nunca a que simplesmente diz o que quer dizer.
Compositora de hits desde os 12 anos, ela correu para que muitas pudessem andar.
Também em um ambiente asbsolutamente conservador, foi uma das poucas a se posicionar contra o fascismo. Não se acovardou como outros tantos sertanejos porque sabia que seu talento estava acima de qualquer polarização: e estava mesmo. Ao se posicionar, diferentemente de outros tantos colegas, foi de fato artista.
O feminismo de Marília Mendonça não precisou ser anunciado porque sempre esteve lá pra quem quisesse ver. Assim como seu talento, não precisa ser afirmado: nota-se.
A música – não apenas a música sertaneja – perdeu muito ontem. E perderam ainda mais as mulheres, porque perderam uma voz que as tornava visíveis, humanas, sujeitas, enfim.
Diante de uma verdadeira artista, entretanto, a morte não impõe suas barreiras: pra nossa sorte, a arte imortaliza.
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