Memes contra Haddad visam melar caráter distributivo da reforma, diz colunista

Atualizado em 19 de julho de 2024 às 16:34
Fernando Haddad

O colunista José Paulo Kupfer, do Uol, escreveu um artigo impecável sobre a indústria de memes contra o ministro da Fazenda Fernando Haddad, apelidade de “Taxad”. Alguns trechos:

Uma onda de memes, com uma infinita variação do termo Taxad, invadiu, recentemente, as redes sociais. Camuflado por um humor nem sempre dos mais refinados, a explosão de críticas à obsessão do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em somar receitas para compensar crescentes gastos, na tentativa de equilibras as contas públicas, quer dar a impressão de refletir sentimento generalizado, resumido na nem um pouco nova expressão “ninguém aguenta mais tantos impostos”.

Uma outra leitura possível do fenômeno dos memes que retratam um Haddad excessivamente tributador é a de que se trata de um movimento não tão espontâneo, financiado não se sabe com dinheiro vindo de onde (memes do ministro taxador foram parar em outdoors na famosa Times Square, em Nova York, com mais de uma pessoa declarando ter sido responsável pela publicação), para barrar esforços do ministro e do governo Lula em reduzir a espantosa regressividade do sistema tributário brasileiro, que cobra, proporcionalmente, mais impostos dos pobres do que dos ricos. (…)

Numa inversão do que se espera de um sistema tributário funcional e decente, no Brasil, grupos de menor renda, em percentagem de sua renda, pagam mais tributos do que o pessoal do topo da pirâmide. Há, por isso, um enorme espaço para taxar os mais ricos, o que tem sido impedido, historicamente, por diversos meios, com patrocínio explícito ou tácito de grupos de interesse, até aqui bem sucedidos na barragem de medidas tributárias redistributivas.

A espinha dorsal dos memes é a de que Haddad e Lula querem aumentar uma carga tributária muita alta, muito maior do que o padrão das economias emergentes semelhantes à brasileira, algo que “ninguém aguenta mais”. A base em que os memes se apoiam, contudo, mostra que o senso comum alvo das “piadas” não tem boa noção do que significa o conceito de “carga tributária”. A carga tributária tão criticada é, no fundo, uma desconhecida.

“Carga tributária” é um daqueles muitos conceitos da economia que, por não serem intuitivos, podem, de fato, confundir o senso comum. A ideia genérica é que se trata de um peso para o cidadão/contribuinte, vergado pelo acúmulo de impostos e taxas, que atacam seu bolso e transferem ao Estado parte dos recursos que poderiam melhorar seu bem-estar pessoal.

Essa, porém, é uma verdade muito relativa. A carga tributária geral não é a mesma para todos os cidadãos/contribuintes. No caso brasileiro, ela é tão menor do que a carga geral quanto maior for a renda desse cidadão/contribuinte.

Carga tributária indica a relação, em termos proporcionais, entre o volume da arrecadação total nominal de tributos e o PIB (Produto Interno Bruto) também nominal. É, numa tradução popular, o resultado de uma fração em que as receitas públicas totais, a preços correntes, estão no numerador e o PIB, a preços correntes de mercado, no denominador, expressa em percentagem.

Consequência direta dessa definição é que a carga tributária, muitas vezes erroneamente confundida com a arrecadação, depende da combinação da variação dos dois elementos, que se relacionam para expressá-la. Se a arrecadação aumenta mais do que o PIB, a carga tributária aumenta, como se espera. Mas se o PIB cresce mais, mesmo com maior arrecadação, a carga cai. Em casos menos comum — em certos episódios de recessão econômica, por exemplo —, a arrecadação pode até cair e a carga aumentar. (…)

Mas, atenção, não houve qualquer novidade nos tributos, em 2021, e, além disso, cresceram as renúncias fiscais, ainda como reflexo da pandemia. Como então explicar essa explosão na arrecadação? São três os principais motivos:

A inflação foi alta, com índices ao consumidor superando dois dígitos. Preços em alta impulsionam a arrecadação porque os impostos são normalmente cobrados como percentagem do valor dos bens e serviços vendidos. É o clássico “imposto inflacionário”. Houve em 2021, retorno de tributos e taxas temporariamente isentados ou com vencimento prorrogado em 2020, auge da pandemia.

A economia registrou forte recuperação cíclica. Em 2020, a atividade retrocedeu 3,9%, e cresceu 4,6%, sobre a base reprimida do ano anterior, em 2021. A reversão insuflou a arrecadação.

Antes de concluir que “ninguém aguenta tanto aumento de imposto”, é preciso também considerar a composição da arrecadação, confundida, repetindo, com carga tributária. No Brasil, em números arredondas, 40% da arrecadação vem da cobrança de impostos indiretos sobre o consumo de bens e serviços, com destaque para o ICMS, imposto estadual, enquanto a receita com tributos sobre a renda representam pouco mais de 25% do total, assim como os encargos sobre folha de salários. Já tributos sobre propriedade e transações financeiras não passam de 6,5% do total.

Reclama-se do peso excessivo da carga tributária total brasileira, sobretudo em comparação com a de outros países, não só emergentes, mas também os mais ricos. É verdade que a carga brasileira, de 33% do PIB, equivale à da média dos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), e é mais alta do que a de países de economia emergente, mais parecidas com a do Brasil, em torno de 20% do PIB.

Mas nem todos se lembram da composição anômala da carga brasileira, e do fato de que, diferentemente da maioria dos emergentes, o Brasil oferece sistemas de aposentadoria abrangentes e serviços de saúde universais e gratuitos. Na comparação internacional, a partir de dados compilados pela OCDE, enquanto o Brasil é o terceiro na cobrança de impostos sobre bens e serviços, num grupo de 35 países, o país ocupa apenas a vigésima sexta posição, no grupo de 35, quando se trata da taxação de renda, lucros e ganhos de capital.

No fim da história, a alta cobrança de impostos sobre conjunto e o baixo recolhimento sobre rendas, lucros, ganhos de capital e propriedade, esconde que, na carga tributária total de 33% do PIB, a contribuição de quem ganha até dois salários mínimos chega a pouco menos de 50% de sua renda, ao passo que quem ganha mais de 30 salários mínimos não contribui com mais de 25% da renda.

Diante desta quadro, numa conclusão honesta, independente dos pesados lobbies que atuam para deixar as coisas como estão, ou pegar carona em benefícios para os mais pobres, deve-se admitir que não é Haddad que está errado ao lutar para aumentar a arrecadação. É errado é o sistema tributário que ele quer reformar e, por isso, enfrenta violentas resistências como a revelada pela explosão dos memes contra o ministro Taxad.