Meu amigo Mário Watanabe me disse uma vez que lia, toda noite, um conto. Porque queria chegar ao fim antes de dormir. Nunca segui a receita de Mário, um dos caracteres mais límpidos que encontrei no jornalismo, um editor discreto e competente que corrigia muitas bobagens de jornalistas que se achavam donos do mundo, mas jamais a esqueci.
Ou melhor.
Talvez a tenha seguido não em relação a leituras, mas a vídeos. À noite, prefiro, em geral, ver um episódio de uma série como The Killing a iniciar um filme de duas horas durante as quais as chances de eu dormir não são pequenas. Sinto que há aí a influência de Mário.
Mário, ou simplesmente Vata, como o chamávamos, se entretinha na cama, sob a luz do abajur que faz parte da vida de todo jornalista, com gênios do conto como Maupassant e Machado de Assis.
Machado. Curioso. Machado não foi apenas o maior romancista brasileiro. Foi também o maior contista. Se ele foi melhor romancista que contista, ou o contrário, é uma questão em aberto. O conto se ajusta melhor à economia de palavras de Machado. Foi seu terreno natural. Mas o prestígio, na literatura, vem do romance, e não do conto. E a glória literária de Machado está ligada a clássicos do romance como Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Gosto muito de todos eles, é claro. Mas é por um conto que tenho uma paixão especial na obra machadiana. Não é sequer um dos contos consagrados, como A Cartomante ou O Alienista. É um conto menor, jamais presente nas antologias.
Chama-se Um Capitão de Voluntários.
É um conto de traição e arrependimento.
O narrador é quem trai. Tudo é sutil, como sempre, em Machado. O traidor é tomado por um remorso que não é grande senão por fazê-lo sentir-se pequeno. A traidora se atormenta, mas já não há volta: perde o velho amor e não quer quem pode ser o novo. O traído, o capitão do título, vai estoicamente ao encontro de seu destino. Não explode, não enlouquece, não comete crime nenhum em nome da honra. Apenas alista-se em uma guerra, a do Paraguai, onde se comporta com uma coragem temerária que sugere ao narrador que o amigo traído estava buscando, muito mais que o brilho das medalhas, a paz da morte. Os sobreviventes que seguissem adiante com o peso da culpa.
Não sei dizer por que, ou talvez saiba, Um Capitão de Voluntários foi, durante um bom tempo, uma de minhas obsessões literárias. Li-o várias vezes, citei-o em contos outras tantas, sugeri sua leitura não sei em quantas ocasiões. O capitão, nomeado apenas no final, é um grandioso desconhecido personagem da literatura brasileira. Bravo, forte, controlado, ele de alguma forma remete ao homem vivido por Clint Eastwood em Gran Torino naquele instante em que ele diz à sua improvável e jovem amiga chinesa que é preciso muito cálculo ao tomar uma decisão como a que as circunstâncias exigiam dele.
O capitão, e talvez daí venha minha enorme admiração por ele e por seu criador, é uma eterna lembrança de que, na traição, o ônus maior cabe a quem trai, e não a quem é traído. Santo Agostinho, num momento em que monjas católicas se matavam em série depois de terem sido estupradas num convento tomado por bárbaros, estancou os suicídios ao afirmar que o opróbrio é de quem pratica e não de quem sofre a violência sexual. A mesma lógica vale para a traição, por mais que, em sua incomparável leviandade amorosa, pareçam leves e felizes homens e mulheres que voltam de um encontro sexual e, no maior descaro, afirmem que a reunião na firma demorou mais que o esperado e o celular tinha que permanecer desligado.
Este texto é dedicado à memória de Mário Watanabe.