No dia 30 de novembro, Kiko Nogueira postou que ‘Gravidade’ era o filme do ano. O texto me fez levantar da poltrona para escrever minha própria defesa do que seria o meu ‘filme do ano’, se fosse para eleger um. E assim fui de leitor a colaborador. Tudo para defender as qualidades, conquistas e provocações de ‘Azul é a cor mais quente’ (La vie d’Adèle: Chapiters 1 & 2, no francês original).
E lá se vai Adèle…
Quebrada de amor
Cabelo indomado
Esfomeada em mar de lágrimas;
Adèle (Adèle Exarchopoulos) é uma jovem de quinze anos. Nascida numa família de classe média (baixa) de Lille, na França, ela corre atrás do ônibus da escola, não usa maquiagem, devora spaguetti, tem cabelo bagunçado, adora literatura, deseja ser professora e, à beira da idade adulta, procura uma identidade que a defina, algo (ou alguém) que a complete.
Esta é a história do seu despertar.
Um despertar emocional, sensorial, intelectual e sexual. Envolvida em todas as etapas desse processo está Emma (Léa Seydoux), a jovem artista de cabelo pintado de azul por quem Adèle se apaixona e que se torna a musa inspiradora de seus trabalhos.
O relacionamento entre as duas personagens levou o filme a ser rotulado como uma história de amor homossexual, uma lamentável redução para uma obra sobre um tema muito maior. Obviamente ‘Azul…’ traz muito de seu tempo ao retratar a relação de um casal de lésbicas antes mesmo da França ter legalizado o casamento gay – o que hoje já é uma realidade no país.
Mas trata-se de um filme sobre a paixão, sobre o amor visto pela ótica de uma jovem mulher em formação. E no fim das contas, seu grande diferencial não é o tema, mas a abordagem próxima, íntima e sincera que o diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche propõe, colocando o espectador como uma testemunha não só da história de Adèle, mas de sua vida como um todo.
Basicamente sem trilha sonora, o filme cobre aparentemente cerca de doze anos da vida da protagonista, se estende por três horas e não é raro ouvir de espectadores ou críticos que gostariam de assistir muito mais – reza a lenda que, ao fim de cinco meses e meio, o diretor tinha 800 horas de filmagem na mão.
E a narrativa se desdobra com uma naturalidade espantosa, fluente e fascinante em sua cinematografia cheia de closes e luminosidade. Enquanto Adèle inicia suas descobertas, procura seu caminho e vaga pela estrada de prazeres e sofrimentos da paixão e do início da vida adulta, nós, do lado de cá da tela, vivemos uma experiência de imersão raramente vista no cinema.
De fato sequer parece cinema. Parece vida.
‘Azul…’ venceu a Palma de Ouro, o prêmio principal do Festival de Cannes deste ano. Numa decisão inédita, o presidente do júri, Steven Spielberg, entregou a láurea ao diretor e às atrizes, reconhecendo que o resultado final seria tão fruto do trabalho de Abdellatif Kechiche como de Adèle e Léa.
Uma decisão justa, tal a entrega das duas e a potência de suas atuações na tela. Muito do filme foi de fato improvisado por Adèle e Léa, num processo de trabalho com o diretor que, segundo as próprias atrizes, beira o insano.
Pois sim, chegamos à controvérsia. Não bastasse as qualidades técnicas, ‘Azul…’ faz muito barulho por onde passa por uma série de polêmicas. A mais popular delas, a presença de três intensas e explícitas sequências de sexo entre as duas protagonistas. Por conta delas, o filme foi banido de Idaho, nos Estados Unidos e gerou críticas ao cinema IFC, em Nova Iorque, por permitir a entrada de adolescentes menores de 17 anos desacompanhados – o IFC inclusive oferece gratuidade aos cidadãos de Idaho que viajarem os 3300 km até NY para ver o filme.
Trata-se de uma polêmica complexa, com diversas variantes. As cenas em questão são longas – a maior delas dura quase 10 minutos – e as próprias atrizes consideraram que o diretor talvez tenha se estendido um pouco demais. Por outro lado, elas se adequam ao ritmo e à proposta geral do filme, de acompanhar a vida de Adèle de forma íntima, afinal o sexo (e a descoberta sexual em especial) talvez seja a experiência mais definidora da personalidade de um ser humano.
Mas há de se admitir que, em certos momentos, o filme esbarra na autoindulgência; e o fato de um homem heterossexual dirigir duas (belas) atrizes heterossexuais em longas sequências de sexo lésbico está no limite entre o necessário/aceitável para a narrativa e a fantasia masculina. O que aconteceria, por exemplo, se em vez de duas belas mulheres a história retratasse a relação de dois homens? Haveria longas cenas de sexo explícito?
Julie Maroh, autora do romance gráfico no qual o filme se baseia – “Azul…’ é também leve e livremente inspirado em ‘La vie de Marienne’, romance inacabado de Pierre de Marivaux – declarou em seu blog que faltaram lésbicas no set para mostrar como é o sexo homossexual. E disse ainda que, do jeito como estão no filme, as sequências beiram o conceito pornográfico do imaginário masculino sobre o que é o sexo entre duas mulheres.
A defesa do diretor Abdellatif Kechiche, de certa forma, pode ser vista no próprio filme quando um dos personagens, numa festa na casa de Emma e Adèle, fala sobre a busca dos artistas masculinos por retratar o prazer feminino em suas obras.
Outro ponto de muita polêmica é o processo de trabalho do diretor.
‘Ele é um gênio, mas um gênio torturado’, declarou Adèle Exarchopoulos ao jornalista Marlow Stern, do The Daily Beast, numa polêmica entrevista ao lado de Léa.
Segundo as duas, a mais longa das sequências de sexo (onde elas tiveram que usar próteses vaginais para simulações de sexo oral) demorou dez dias para ser filmada.
“Que bom que ganhamos a Palma de Ouro, porque foi um período terrível”, disse Léa.
Na mesma conversa as atrizes ainda revelaram que não trabalhariam com o diretor novamente e que, na cena em que as personagens brigam, Abdellatif filmou com três câmeras uma única tomada contínua de uma hora e as proibiu de simularem golpes, forçando Léa a realmente bater em Adèle.
“Você pode ver no filme que estamos sofrendo de verdade”, ela diz, enquanto Léa complementa: “Eu tinha que empurrar ela pra fora de uma porta de vidro; a Adèle se cortou, estava sangrando, chorando, o nariz escorrendo e ele disse ‘Não terminamos, vamos fazer de novo’”.
Obviamente, a entrevista chegou aos ouvidos do diretor, que chamou Léa Seydoux de arrogante e mimada e prometeu processar a atriz. Abdellatif, sinceramente ou pondo mais lenha na fogueira, chegou até mesmo a sugerir cancelar o lançamento do filme achando que a experiência do público seria influenciada por toda a polêmica.
Mas o fato é que toda a controvérsia só levantou mais interesse pelo filme. ‘Azul é a cor mais quente’ já está em cartaz no Brasil e foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, mas não poderá concorrer ao Oscar na mesma categoria. O filme não cumpriu a regra da Academia americana que obriga o pretenso candidato a entrar em cartaz em seu país natal até o fim de setembro (na França, o filme estreou em 5 de outubro).
Não custou muito (4 milhões de euros), não vai render uma fortuna (até aqui arrecadou 7 milhões de dólares no mundo), e é uma história sobre gente de verdade. Uma obra singular capaz de fascinar e suscitar debates sobre seu conteúdo e sua forma.
Meu filme do ano.
E lá se vai Adèle
Levando agora e sempre
O vazio ao seu lado
Vestindo azul enamorado.