Um grande amor se mede pelo beijo, não pelo sexo.
Tenho, no meu quarto, uma reprodução de um quadro de Klimt chamado O Beijo. Está bem em frente da minha cama. Gosto de acordar com aquela imagem estranhamente grandiosa ao alcance de meus olhos míopes de escritor barato. Os pés descalços da moça, o porte majestoso do homem, as pequenas e coloridas flores do campo.
Beijo. Não existe nada mais íntimo, nada que aproxime mais duas pessoas do que um beijo. Nem o sexo. Uma vez, na adolescência, ouvi uma frase que me intrigou. Tio Fabio, um homem sábio do interior, disse com sua voz estentórea de Fred Flintstone numa roda de homens: “Mil cópulas não valem um grande beijo”. Eu sequer sabia então, nem na teorioa e muito menos na prática, o que era cópula. Depois, a vida me mostraria que, mais uma vez, Tio Fabio estava certo.
Sem beijo não há nada. Quando um casal não se acerta no beijo, a causa está perdida. O beijo, muito mais que o sexo, define o relacionamento. Bons beijos dão bons romances. Beijos ruins dão romances ruins. Não existe sexo excitante com beijo medíocre. Acho poético o código das marafonas. Elas entregam tudo em troca de moeda, mas não o beijo. O sexo pode ser comércio. O beijo, nunca. Um relacionamento floresce quando dois querem se beijar com volúpia molhada de um convalescente que depois de uma longa temporada sai enfim à rua. E você percebe que alguma coisa mudou, e para pior, quando perde a vontade de colar seus lábios aos dela. A falência do beijo antecipa a do amor.
Beijo. Não sei por que decidi escrever sobre beijo. Ou melhor: sei. É que passei outro dia, depois de muito tempo, pelo lugar em que ia dançar nas noites de domingo. Mingau. Era assim que chamávamos aquelas festas ingênuas de domingo que começavam às 8 e terminavam à meia-noite. Nem sei se existem ainda. Vejo agora que escrevi dançar. Só posso descrever os passos desgovernados que eu dava no salão como dança à luz de uma generosa licença poética ou de uma espantosa demonstração de auto-indulgência.
É interessante como a vista de certos lugares instantaneamente reaviva lembranças que nos pareciam mortas. Ao ver a fachada daquele salão, retrocedi anos. E foi então que vi ali dentro do salão aquela menina cuja pele tão clara contrastava notavelmente com os cabelos negros como piche. Márcia tinha o ar de inocência maliciosa que é tão genuíno em meninas quando estão se transformando em mulheres. Um certo ar que, depois, nem mesmo o cálculo mais fino consegue reproduzir. Bandeira tem um verso lindo sobre isso: o precário frescor da pubescência.
Jamais esqueci a música que tocava quando a tirei para dançar. O refrão dizia: I am so happy… Eu também estava tão feliz ali, aos 15 anos, com a deusa daquele salão de adolescentes. Terminada a música, nos encostamos em uma pilastra. E então nós parecíamos aquele casal do quadro de Klimt. Para ser honesto, acho que nossas línguas nem sequer se encontraram, mas que importa? Foi meu primeiro beijo. Lembro, nos detalhes, as palavras que disse a ela em minha voz titubeante de garoto que quer parecer homem. Foram consideradas engenhosas por meus amigos e, depois, descaradamente copiadas nas tentativas de ganhar um beijo de boca, quase sempre com êxito.
Falei com Márcia uma ou duas vezes depois daquela noite. Uma demorada temporada no hospital me impediu de tentar repetir aquele triunfo no mingau. Numa das vezes, estava exatamente no hospital. Acho que alguém, provavelmente minha mãe, lhe deu o telefone do hospital quando ela ligou para minha casa. O som de sua voz me confortou como a visão de um amigo numa terra estranha. Depois, não restou nada, senão uma lembrança que aos poucos foi se esgarçando até ressurgir, como que por milagre, restaurada muitos anos depois, quando passei pela frente do velho salão.
Uma velha cigana, num romance de Hemingway, diz a uma jovenzinha pela primeira vez apaixonada que, na vida de uma mulher, há três ocasiões em que a terra treme. Para um homem a conta não é diferente. A terra tremeu para mim naquela noite em que tive Márcia nos braços e dei meu primeiro beijo. Me pergunto, tolamente, o que a vida fez de Márcia. Proust escreveu que as ruas e os lugares infelizmente são fugitivos como os anos. Acrescento o seguinte: também as pessoas infelizmente são fugitivas como os anos.