Milton Hatoum sobre Palestina: ‘barbárie está no interior dessa suposta civilização ocidental’

Atualizado em 2 de novembro de 2024 às 18:35
Milton Hatoum. Foto: Divulgação

A família do premiado escritor brasileiro Milton Hatoum tem uma experiência própria do grito por liberdade “do rio ao mar”, entoado historicamente pelo povo palestino.

Na verdade, a origem do autor é libanesa, país que também é banhado pelo mar mediterrâneo, assim como a Palestina. O avô de Hatoum atravessou esse mar e cruzou o mundo para chegar no Rio Amazonas, mais especificamente no encontro de afluentes que formam o rio, na cidade de Manaus.

“O primeiro imigrante da minha família veio de Beirute, foi meu avô paterno, que eu não conheci. Ele chegou no Recife, foi pra Belém e depois Manaus. Isso foi em 1904”, lembra o escritor ao narrar a trajetória da família que, no início, seguiu subindo o rio e foi parar em Rio Branco (AC), mas acabou voltando à capital amazonense.

“Eu nasci em Manaus e passei minha infância nesse, vamos dizer, pequeno Líbano, manaurabe, vamos dizer assim. Ouvindo histórias do Líbano, história de viagens e também convivendo com amazonenses, com manauaras, com estrangeiros”. Milton Hatoum atribui à mistura cultural a fundação da literatura em sua vida.

O escritor já recebeu três prêmios Jabuti, por Relato de um Certo Oriente (1989), Dois Irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005).

“Isso foi importante porque já na infância você percebe essas diferenças, a alteridade já está presente na tua infância”.

“E com isso você percebe que os outros existem, que outras culturas existem, que são importantes. Que não há uma hierarquia de culturas. A presença desse outro na tua infância já é uma riqueza”.

Mobilizado pelo massacre em curso na Faixa de Gaza, Hatoum é um crítico da atuação histórica de Israel que, segundo ele, é resultado do colonialismo desenvolvido pelo Ocidente.

“O ocidente sempre teve a pretensão de ser, vamos dizer, mais culto. Ou [afirmar] que a barbárie está longe deles. E a gente sabe que a barbárie está no interior dessa suposta civilização”.

Confira a entrevista na íntegra 

Que recordações você tem de sua infância em Manaus?

Eu nasci em Manaus e passei minha infância nesse, vamos dizer, pequeno Líbano, manaurabe, vamos dizer assim. Ouvindo histórias do Líbano, história de viagens e também convivendo com amazonenses, com manauaras, com estrangeiros.

Sempre foi uma cidade muito cosmopolita, porque é uma cidade portuária. Foi o maior porto fluvial da América do Sul durante o ciclo da borracha.

Uma cidade que foi ao mesmo tempo muito rica e muito pobre, como são essas cidades e sociedades da periferia do mundo.

Qual a origem do sobrenome Hatoum?

O nome Hatoum é um nome árabe. Existem  famílias com o meu sobrenome no Líbano, na Síria, na Palestina.

O primeiro imigrante da minha família veio de Beirute, foi meu avô paterno, que eu não conheci. Ele veio de Beirute, chegou no Recife, foi pra Belém e depois Manaus. Depois ele subiu O rio Amazonas, entrou no Purus e foi até Rio Branco.

Isso foi em 1904. Meu pai era bilingue. Meus avós maternos não”. Quer dizer, eles falavam português, mas sem influência.

E meu pai conversava em árabe com eles e com os amigos deles, fumando narguilé ou jogando gamão, enfim, conversando. Eles conversavam em árabe e eu ouvia a língua árabe e música árabe.

Comia também a culinária libanesa, síria que a minha avó preparava, por exemplo, muito misturada com a cozinha amazônica, uma culinária mestiça, vamos dizer assim, como é o Brasil, como é a nossa literatura também.

Isso foi importante porque já na infância você percebe essas diferenças, a alteridade já está presente na tua infância.

E com isso você percebe que os outros existem, que outras culturas existem, que são importantes. Que não há uma hierarquia de culturas. A presença desse outro na tua infância já é uma riqueza.

Porque as culturas, elas não são puras. As culturas são vasos comunicantes, elas dialogam o tempo todo, não há hierarquia de culturas.

Isso quem construiu foi o Ocidente, o olhar do Ocidente em relação aos outros, aos orientais, aos africanos. O ocidente sempre teve a pretensão de ser, vamos dizer, mais culto ou [afirmar] que a barbárie está longe deles e a gente sabe que a barbárie está no interior dessa suposta civilização.

Você acredita que a solução para o conflito na Faixa de Gaza é a criação de dois Estados?

Os judeus palestinos que constituíam entre 5 a 10% da população, naquela época, eles conviviam muito bem, harmoniosamente, com palestinos, cristãos e muçulmanos. Muçulmanos eram a maioria.

Então a criação de um Estado ali, vamos dizer, por europeus, a criação de Israel como foi feita, perturbou o Oriente Médio, porque foi um estado imposto que os estrangeiros que foram para lá devastaram centenas de vilarejos e aldeias e cidades da Palestina históricas

O que está acontecendo agora é efeito disso, é devastador e trágico.

A criação de dois Estados, eu acho que seria hoje muito difícil.

Eu cito ao Eduard Said. Até 1992, ele acreditava nessa solução de dois Estados.

Mas quando ele visitou Israel e a Palestina e percebeu que havia inúmeras, centenas de colônias de judeus sionistas nos territórios palestinos, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, ele percebeu que essa solução de dois Estados era totalmente inócua.

Então ele percebeu que ali a única saída é um Estado, um único estado laico e democrático com direitos civis iguais para palestinos e judeus e cristãos também.

Você tem que pensar além das questões religiosas. Elas não são as questões fundamentais. A questão fundamental é a terra, a quem pertence a essa terra. Não é o mandato de Deus, não é o cartório divino que deu essas terras.

Isso tem uma história, os palestinos estão lá há mais de 1500 anos, então isso é fundamental.

Originalmente publicado no Brasil de Fato

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