Publicado no Diário de Pernambuco
Ayanna tem 10 anos. É negra. Estuda numa pequena escola particular no bairro de Candeias, Jaboatão dos Guararapes, e este ano não quis participar das comemorações do Dia das Crianças. Em casa, relatou à família que tinha vivido uma ameaça logo após a divulgação do resultado do primeiro turno.
Um menino, da mesma idade, se aproximou e disse: “Ayanna, aqui não é lugar para você. Você não vai poder estudar mais nesta escola porque não combina com sua cor. Sua família é negra e vocês têm que viver separados de nós. Bolsonaro já ganhou e garantiu que vai resolver essa mistura. Se seus pais vierem falar merda, a gente mete bala”.
Segundo contou a mãe, Josivânia Freitas, a filha foi vítima de uma sequência de outras frases intimidatórias e preconceituosas. Teria sido chamada de “burrinha” em ocasião anterior. E questionada: “Você estuda nesta escola por causa de bolsa?”, teria perguntado o mesmo menino a Ayanna.
A garota transferiu a pergunta à mãe: “Mamãe, o que é bolsa?”. Josivânia explicou que era um benefício de gratuidade para alguns alunos, mas que, no caso dela, a escola era paga pela família. Ayanna chorou, não quis ir à escola nos dias seguintes e os pais analisam se será preciso transferir a menina da unidade educacional.
Ayanna é a única criança negra da série dela. Ela lembra de outras duas na escola; com uma diferença: Ayanna é cafusa, mistura de negra e índia, com descendência dos Xucurus de Pesqueira. Por isso, tem melanina mais forte que a das colegas do 5º ano.
“Chorei e não foi pouco. Minha filha vive no meio de uma ameaça. Tem medo de existir”, diz Josivânia, pedagoga, doutoranda em Educação Matemática e Tecnológica na UFPE, professora de pós-graduação em Psicopedagogia educacional da UniNabuco, de pós-graduação no Instituto Nacional de Ensino Superior (Inesp/Caruaru), do ensino fundamental em Jaboatão dos Guararapes e coordenadora pedagógica da Escola de Saúde do Recife (ESR).
“Pensei muito antes de falar, mas a situação chegou a um ponto que é necessário”, frisou a mãe, que chegou a publicar o caso no perfil pessoal dela no Facebook. As frases do menino foram levadas à professora.
“Não tenho críticas à escola nem ao projeto educacional deles. É muito organizada. Acho que é uma questão pontual, que vem de casa. A professora disse que determinaria as desculpas por parte do menino e que mandaria ele dar um abraço nela. Quem conhece minha filha sabe o quanto ela é carinhosa, mas eu proibi o abraço. Não quero que haja abraço se ele tem nojo de minha filha e se já disse que negro tem que servir”, pontuou a mãe.
Josivânia diz que viu as frases do menino como se fossem algo natural para ele – o que tornaria mais preocupante em tempos de intensificação de discursos preconceituosos semelhantes.
“Só penso como vai ser daqui pra frente se tivermos um representante que diz que lugar de negro é na senzala”, disse ela.
A doutoranda se declara mais incomodada com a banalização do racismo. Conta que, logo após postar o relato sobre a filha no Facebook, recebeu uma ligação de uma colega da área de pedagogia minimizando o fato e dizendo que seria “muito fácil resolver”, que “não foi trauma grande porque não aconteceu nada demais” e que ela saberia como conduzir.